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Texto de Apresentação do Livro “Roda das Encarnações” por Mia Couto
Um livro não se apresenta, tal como não se apresenta uma pessoa. O que vou aqui fazer é apenas partilhar convosco o modo como me aconteceu este “Roda das Encarnações”. O que mais me tocou neste livro foi um sentimento religioso que perpassa por todos os poemas que se anuncia logo no título. O título fala de encarnações e o título podia ser uma mentira poética mas não é. Este livro trata desse círculo infinito de que faz parte a migração de corpos e almas e de mundos.
De um modo muito feliz o título reúne dois conceitos: o da roda e o da encarnação. É uma falsa dualidade porque se trata de uma única entidade. Quando se fala em “roda” está-se a convocar um tempo circular que não deixa que os vivos se afastem dos mortos. Evoca-se um tempo que reunifica as pontas do passado e do futuro. Quando se fala em “roda” está a sugerir um jogo, uma dança, uma relação lúdica com o tempo que só acontece no tempo da infância. E a fotografia da capa é elucidativa: a poeta descalça-se à porta do poema, espaço místico e sagrado, para depois voltar a usar os sapatos quando eles tomaram vida e se encheram de alma.
O que se anuncia logo no inicio, logo no primeiro poema dedicado ao seu filho é uma espécie de rosário de encarnações. É curioso pensar como o termo “encarnação” é partilhado por um conjunto de discursos religiosos como o cristianismo, o budismo, hinduísmo e espiritismo. No discurso cristão a palavra foi sugerida no Novo Testamento para designar a vinda de Cristo à terra. Cristo “encarnou” porque reconciliou em si mesmo a carne e o espírito divino. A encarnação opera um milagre fundamental: sem ter deixado de ser Deus, Deus se fez homem. Sendo carne e sendo mortal, Cristo fez-se alma imortal dos mortos e dos vivos, dos antepassados e dos vindouros.
Este livro é habitado por um sentimento religioso no sentido primordial da palavra “religião”, que é aquilo que nos leva a nos relegarmos a algo que é universal, que é perene e que é sagrado. Um sentimento que não é exactamente o de uma qualquer religião concreta mas de uma religiosidade que nos faz reconectar com o universo e que nos faz descobrir o mundo com os olhos da infância.
Há uma ferida original que é a existência individualizada, dispersa e fragmentada. Há um verso em que Sónia diz: “a minha alma está cheia de um pedaço de todos”. Sucedeu algures no nosso tempo vivido um rasgão que impede que cada um de nós não seja todos os outros. Há um nó que nos aprisiona numa única pessoa. Há uma cicatriz que nos condena a viver a nossa vida por pequenos pedaços e insuficientes passos. Esse rasgão precisa ser suturado. Quem faz essa costura é a poesia. É com essa agulha e com esse pano que Sónia vai alinhando versos com a intenção de recuperar o sentido sagrado da palavra. Há um poema em que ela escreve: “… caminho com as palavras impressas em meus pés”. Isto é poesia pura. É como se um livro estivesse escrito na superfície da terra. E como se ao inverso foi a terra que lesse o poeta. Foi a poesia que escrevesse o poeta.
É no discurso poético que Sónia Sultuane constrói um idioma universal e que nos reconduz a uma experiência de harmonia absoluta. Neste livro a palavra é revelada com um meio não apenas de chegar ao outro mas de ser um outro. Essa palavra não é já uma coisa mas uma divindade. A essa divindade Sónia se dirige, numa espécie de confissão de uma menina pequena que procura adormecer: “… E é como se me lesses, Um livro de contos pagão e panteísta, Fazendo calar o tropel sonoro da minha alma inquieta”.
O assunto destes poemas é o mesmo de toda a poesia: a procura de um regresso a casa. Essa casa pode ser uma geografia (aqui se sugere com frequência a Índia). Mas essa casa nunca chega a ser um lugar. Essa casa pode ser uma vida anterior, pode ser a evocação de um espaço de afecto da família e da infância (os poemas que são dedicados são dedicados quase sempre a familiares, numa roda sultuanica, com excepção honrosa do meu falecido pai, o patrono desta casa). Essa casa não é um tempo ou um lugar: é uma viagem, uma travessia, é o amor que apaga fronteiras entre corpos e vidas. Neste livro partilhamos uma casa feita com palavras. Palavras de alguém que não apenas escreve. Alguém que é a própria poesia.
Intervenção do autor no lançamento do livro “Roda das Encarnações”, de Sónia Sultuane, semana passada, na Fundação Fernando Leite Couto.
[NOTICIAS, Maputo, 16 de Novembro de 2016, p. 23] — with Sónia Sultuane.
Reconhecimento da Obra Literária no Brasil – Prémio Afrolic 2019
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UFRN promove Congresso Internacional sobre Literatura Africana – Tribuna do Norte
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