Por detrás de cada porta

Artigo publicado na Revista Índico nº 27 das Linhas Aéreas de Moçambique – Ano 2014

Fotografias abaixo: Sónia Sultuane

Tive o privilégio de, também, me ter tornado gente num dos lugares mais belos e  misteriosos de Moçambique. 
Ainda muito pequenina, lembro-me das casinhas brancas com portas de vários feitios,  pesadas, altas,  de cores variadas. Às vezes, queríamos abrir e entrar para descobrir o que encerravam;  outras vezes, ficávamos cheios de medo do que elas guardavam.
Lembro-me dos bancos no jardim onde nos sentávamos para descansar ou programar a próxima malandrice. 
Tenho uma vaga ideia de um grande corredor com fachadas pintadas de amarelo, onde ficavam as mulheres mais bonitas da ilha.  Vestidas de capulanas garridas,  sentavam – se nas escadinhas e pintavam o rosto com mussiro, criando verdadeiras obras de arte. 
Musicando, tocavam-se, embalavam-se. 
O paredão, todo branquinho, parecia abraçar o mar com os seus candeeiros antiquíssimos nas suas extremidades. 
Lembro-me do tempo ameno, da lua a mergulhar na calmaria do mar verde encerrando os muros da fortaleza da ilha…era como se as suas portas se fechassem para os estranhos. 
Lembro-me de ver os peixes,  corais e as conchinhas no fundo do mar.
De repente, cresci e parti, e essa porta  fechou-se, levando para bem longe todos os mistérios infantis. Passados uns anos, regressei a este lugar sagrado. Todos estávamos mais velhos, eu, a terra, a ilha, os que aqui vivem, a vida da ilha. Senti o sabor a velho. Vi as ruas povoadas de almas silenciosas, vi os mesmos candeeiros que iluminaram a minha infância, vi as mesmas canoas coloridas, mas já cansadas do tempo, com as velas todas remendadas, como a própria ilha, guardando as memórias de cada viagem partilhada.
Caminhei pelas ruas desertas onde ainda ecoam as vozes dos escravos e do comércio. Vi o hospital imponente de portas fechadas, que se tornou num lugar assombrado, depósito  das memórias de dor, amor, esperança e fé. 
Encontrei pelas ruas máquinas pesadas, abandonadas no meio do nada, como se estivessem à espera de nova vida, para voltarem ao seu trabalho.
As correntes que aprisionavam as almas roubadas, em outras latitudes, escravas da matéria mas não da alma, estão aqui a contar a sua história. 
Os cheiros agarrados às paredes, os sabores que aqui aportaram, ficaram também entranhados no corpo da ilha. Os ritmos que se dançam,  nos corpos que se contornam, estão cravados os gestos nunca esquecidos de uma vida dura, mas também de uma vida cheia de esperança. 
As portas, as grandes guardiãs da ilha, dos sonhos aqui sonhados, dos mistérios aqui vividos,  dos segredos aqui enterrados, de uma outra era de uma outra dimensão. Está, aqui encerrado, atrás destas portas, todo o mistério de uma das mais belas ilhas do mundo.  Aqui, atrás destas portas, estão guardadas as memórias da nossa história. 

Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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