Fernanda Cardoso Nunes

RODA DAS ENCARNAÇÕES: OS CAMINHOS DE EROS NA OBRA DE SÓNIA SULTUANE

Fernanda Cardoso Nunes (UECE)
Sávio Roberto Fonseca de Freitas (UFPB)

Resumo: Este artigo objetiva trabalhar o erotismo místico da poesia da escritora moçambicana Sónia Sultuane em sua obra Roda das Encarnações (2017). Através da leitura dos poemas constantes na referida obra, pudemos perceber que o fenômeno místico, através da constante presença erótica em sua obra e a busca pela transcendência do eu lírico nos seus textos, constitui-se como fio condutor de sua criação literária. Nossa fundamentação teórica irá se basear em Castello Branco (1984), Bataille (2004), Freitas (2019) e Quintella (2014). Esperamos, com essa pesquisa, analisar a poesia de Sultuane em seus aspectos literários místicos e despertar cada vez mais o público leitor brasileiro para a amplitude poética de sua obra.
Palavras-chave: Literatura moçambicana. Roda das Encarnações. Erotismo. Sónia Sultuane.
Abstract: This article aims to work on the mystical eroticism of the poetry by Mozambican writer Sónia Sultuane in her work Roda das Encarnações (2017). Through reading the poems contained in that work, we could see that the mystical phenomenon, through the constant erotic presence in her work and the search for the transcendence of the lyrical self in her texts, constitutes the guiding thread of her literary creation. Our theoretical basis will be based on Castello Branco (1984), Bataille (2004), Freitas (2019) and Quintella (2014). With this research, we hope to analyze Sultuane’s poetry in its mystical literary aspects and to awaken more and more the Brazilian reading public to the poetic breadth of her work.
Keywords: Mozambican literature. Roda das Encarnações. Eroticism. Sónia Sultuane.
Introdução
Sónia Sultuane nasceu em Maputo, capital de Moçambique, no dia 4 de Março de 1971. Estreou nas artes plásticas em 2005, tendo participado na exposição coletiva “Hora O” com o trabalho “De Dentro Para Fora”. Desde então integrou diversas exposições coletivas dentro e fora do país. Em Junho de 2009, teve destaque a sua primeira exposição individual internacional em Macau, participou ainda em exposições coletivas na Itália (Milão e Piacenza), em Portugal e na África do Sul. Em 2009 apresentou, no Instituto Camões, em Maputo e na Beira, a sua primeira individual, intitulada “Palavras que Andam”.
Como artista multifacetada, Sónia Sultuane é poeta, escritora, artista plástica e curadora, além de adentrar o universo de outras artes como a música, a dança, a moda e a fotografia. Os textos de Sónia Sultuane fazem parte das antologias Universal Lusófona Rio dos Bons Sinais, Zalala, Antologia dos Silêncios que Cantamos, poesia moçambicana e ainda nas antologias Poesia Sempre e Nunca Mais é Sábado. Como poeta conta com quatro obras publicadas, Sonhos (2001), Imaginar o Poetizado (2006), No Colo da Lua (2009) e Roda das encarnações (2016, publicada no Brasil em 2017, pela editora Kapulana). Conta ainda com as produções literárias infanto-juvenis, A Lua de N´weti (2014) e Celeste, a boneca com olhos cor de esperança (2017). A poesia de Sultuane pode ser vista como se destacando dentro da poesia de autoria feminina moçambicana contemporânea no sentido de que esta é marcada por poemas escritos principalmente por autores. Vale lembrar as vozes poéticas de moçambicanas como Noêmia de Sousa, Glória de Sant’Anna e Tânia Tomé. Como observa Renata Quintella Oliveira (2014, p.52),
Algo importante está sendo esboçado por esta escritora: a necessidade de se feminizar a poesia naquele país onde, em se tratando de vozes no feminino, só havia silêncio e fala no masculino. O feminino sempre foi exposto pela voz do outro. Essa necessidade tornou-se urgência. E Sónia abre esses caminhos, rompendo com esse silêncio secular, instaurando um novo ciclo. Não há mais motivos para o silêncio. Há urgência de canto, de grito, seja ele de dor, prazer ou até mesmo apenas voz.
A poesia de Sónia Sultuane é fortemente marcada pelo tom místico e ao mesmo tempo sensual, característica de um erotismo místico ou sagrado que a insere dentro da tradição de escritoras de língua portuguesa que unem dois aspectos cruciais da existência humana: a união com o outro e a união com a sacralidade da vida, seja através do divino, seja através da natureza:
E é logo o título que nos prepara não para uma ruptura, ou inversão, mas para uma espécie de aliança estruturante entre o pendor sensorial e o apelo místico. A roda das encarnações convoca necessariamente as doutrinas sobre a transmigração da alma ao longo de tempos imemoriais, de vidas anteriores, de emoções não resolvidas nessas mesmas vidas. Isto é, aquilo a que vulgarmente se chama karma ou destino e que teria a ver com o ciclo de intenções, ações e consequências que precisa ser quebrado para ultrapassar e resolver uma espécie de bloqueio encerrado… na roda das encarnações. (NOA, 2017, p. 83)
Na obra em estudo, Roda das Encarnações, pretendemos analisar como sua poiésis se configura e percorre os caminhos de Eros e dos aspectos sagrados da experiência humana.
A alma inquieta e a poética dos sentidos
No “Posfácio” do escritor Francisco Noa para a obra Roda das Encarnações, lemos que “[…] a poesia parece funcionar, neste caso, como tentativa de purificação, de redenção e de sublimação dos desequilíbrios e das cargas negativas acumuladas nas diferentes vidas passadas.” (2017, p.83). Ele ainda destaca que os poemas da obra “[…] oscilam entre a materialidade algumas vezes crua das sensações e a espiritualização das mesmas.” (2017, p. 84), ou seja, a oscilação entre uma dimensão transcendente ou cósmica e uma dimensão sensual (“sensualista”).
Dentre os recursos poéticos utilizados pela autora moçambicana, Noa destaca o uso abundante de sinestesias: “Exuberante rapsódia de sensações e emoções, a sinestesia acaba por instituir-se como reinvenção da própria sensação, seja ela tátil, visual, olfativa ou mesmo sonora.” (2017, p. 85). Vale lembrar aqui que o recurso poético da sinestesia foi amplamente utilizado pela poesia simbolista brasileira no século XIX, bem como no início do século XX e em poemas modernistas de autoria de Cecília Meireles, Gilka Machado, Tasso da Silveira, entre outros.
E a poesia vai-se derramando numa religiosidade sem religião, onde Deus, Natureza, Universo, Tempo, Lugar, Cosmos, karma se entrelaçam num círculo mais de busca de transcendência do que propriamente da sua afirmação ou realização. E na intensa e envolvente dicotomia vida-morte, emerge um sentido de mortalidade da qual se renasce quase que indefinidamente, numa aparente negação dessa mesma dualidade. E aí percebemos que, sair da roda das encarnações, quando se sai, mais do que redenção, significa sobretudo abraçar a eternidade, superação das prisões que o corpo, isto é, as sensações foram engendrando na travessia do tempo e da memória. (NOA, 2017, p.86)
Em um dos poemas, “Alma inquieta” (SULTUANE, 2017, p. 39), o eu lírico de Roda das Encarnações se define como tendo uma “alma inquieta, sensorial”. A obra da escritora moçambicana, de fato, contém em si uma forte presença dos tons místicos, transcendentais e, ao mesmo tempo, eróticos no sentido de uma busca por apreender o mundo ao redor e além, através das percepções sensoriais. Trata-se de uma escrita de Eros, regida pelo signo do Amor:
Os caminhos que conduzem aos domínios de Eros podem ser considerados erráticos, no sentido de que o fenômeno erótico não cabe em definições precisas. Percorrer essas trilhas incertas, altamente carregadas de subjetividade, é se lançar numa direção contrária ao desejo, que segue as veredas da fugacidade e do caos. A tentativa de verbalizar Eros se torna, portanto, absurda e ao mesmo tempo sedutora. (NUNES, 2007, p.73).
Dessa forma, a linguagem erótica se assemelha muito a linguagem mística, visto que ambas se caracterizam por tentar cristalizar através da palavra a fugacidade do desejo de completude. A linguagem erótica se define por sua ânsia de conhecer, de fundir os opostos. Ela é tortuosa, curiosa, “impossível, inadequada, imediatamente alusiva quando a queríamos mais direta, a linguagem amorosa é vôo de metáforas: é literatura” (KRISTEVA, 1988, p.21). Como bem observa Lúcia Castello Branco, os “desvios amorosos” de Eros são muitos e buscar uma definição cabal desse fenômeno constitui tarefa de impossível realização. O que se, dessa forma, são aproximações, buscando o próprio caminho, a trilha cíclica do deus da mitologia grega que seria o responsável pelo desejo de união entre os seres:
A ideia de união não se restringe aqui apenas à noção corriqueira de união sexual ou amorosa, que se efetua entre dois seres, mas se estende à ideia de conexão, implícita na palavra “religare”(da qual deriva “religião”) e que atinge outras esferas: a conexão (ou re-união) com a origem da vida (e com o fim, a morte), a conexão com o cosmo (ou com Deus, para os religiosos), que produziriam sensações fugazes, mas intensas, de completude e de totalidade.(CASTELLO BRANCO, 1984, p.65-6)
Vôo esse de metáforas que também será observado na forma em que Sultuane aborda conceitos místicos budistas como a roda das encarnações, ou roda do samsara como no poema que dá título ao livro e que é dedicado a seu filho:
Sou os olhos do Universo,
a boca molhada dos oceanos,
as mãos da terra,
sou os dedos das florestas
o amor que brota do nada,
sou a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o mundo,
sou o que sinto sem pudor,
sou a liberdade de mãos abertas, agarrando a vida por inteiro
estou em milhares de desejos, em milhares de sentimentos
sou o cosmos
vivendo na harmonia na roda das encarnações.
(SULTUANE, 2017, p. 13)
Observemos, neste poema, o intenso tom místico e ao mesmo tempo erótico que permeia sua poesia: Eros e Logos, Amor e Conhecimento. Essa ideia do impulso erótico como forma de conexão cósmica está presente num dos textos filosóficos mais importantes da cultura ocidental e um dos mais antigos acerca do fenômeno amoroso: o Banquete (c. 385 a. C.) de Platão. Com o texto de Sultuane, podemos observar um profundo diálogo entre Eros e Logos. O discurso poético, através do erotismo, converte-se em investigação do ser amado e do mundo: o Amor e a palavra poética estão definitivamente interligados. O eu lírico aqui se constitui em um eu observador que se define como “os olhos do Universo”, perscrutando cada recanto da infinita imensidão do cosmos (“sou o cosmos”). Esse eu lírico também destaca a sua profunda conexão com a Natureza ao afirmar que é a “boca molhada dos oceanos”, “as mãos da terra” e “os dedos das florestas”. Uma fusão com a Mãe Terra em seus diversos aspectos.
Eis uma verdadeira “ânsia do absoluto”, muito presente também na poesia da já mencionada Gilka Machado (1893-1980), na qual podemos perceber muitas similitudes com a poesia de Sónia Sultuane. Temos aqui um “sensualismo sublime” que transcende o ser mulher e envolve a Natureza, atravês de metáforas de forte teor místico, onde as autoras entrelaçam o aspecto carnal da existência ao espiritual: “o erotismo não como mera fruição da sexualidade, ou como o gozo sexual propriamente dito, mas antes como a ânsia do absoluto, da fusão com o outro e com o universo […].” (CASTELLO BRANCO, 1984, p.91). Ainda no mesmo poema, o eu lírico sente a força da “a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o mundo”, a verdadeira potência do verbo criador que se manifesta e se amplia rasgando o “útero” da imaginação criadora. A palavra e seu poder demiúrgico que atestam a sacralidade do ato criador poético.
Nesse sentido, seus desejos e sensações são sentidos “sem pudor” vivendo em plena harmonia a roda das encarnações. Uma poética de um erotismo pleno, de ampla investigação do ser mulher e de sua profunda conexão com a Terra e o Universo. Percebe-se também uma clara feminização do discurso poético no sentido do amplo uso das metáforas ligadas ao ato da maternidade, não só pelo fato do poema ser dedicado a seu filho, bem como ao já referido ato criador de sua poesia:
Uma estrada muito longa teve que ser percorrida até as primeiras mulheres, enfrentando diversos obstáculos, iniciarem uma escrita no feminino. Porém, esta tarefa foi e ainda é arduamente difícil, visto que, embora hoje já comecemos a ter o prazer de ler uma literatura escrita por mulheres, o discurso através do qual essa escrita se constrói ainda é masculino. É necessária a feminização desse discurso e isso pressupõe toda uma desconstrução de valores e a sua reconstrução. (OLIVEIRA, 2014, p. 60)
Assim, a poética de Sultune, em seu livro Roda das encarnações, realiza esse processo de feminização do discurso descrita acima por Oliveira. Rasurando e reconstruindo o discurso predominantemente masculino com metáforas ligadas a Natureza, a maternidade e a terra, universos verbais intimamente ligados ao feminino, traduz sua ânsia de traduzir a função criadora e sagrada da palavra.
A linguagem mística e o verbo criador
No poema “Vocabulário” (2017, p. 14), Sónia Sultuane traz a força de toda a sua busca pela palavra que alcance a vivência mística:
Por todos os lugares agrestes e sagrados onde piso,
pelas savanas, florestas e montanhas que me povoam,
caminho com as palavras impressas em meus pés
e viajo no mundo a qualquer hora do dia ou da noite
falo em qualquer língua
rezo as palavras das mais diversas religiões
sem amarras ou falsas convicções
no meu coração vive todo o vocabulário
que só eu entendo e comigo caminha
um vocabulário todo ele sentimento, esperança e perdão
para que o amor não morra
esquecido em qualquer canto do universo.
O eu lírico aqui, traz “palavras impressas” nos seus pés talvez numa ânsia de deixar inscrito, em cada caminho percorrido, as marcas de seu ser para que “o amor não morra/ esquecido em qualquer canto do universo”. Percebemos aqui a busca da permanência do amor espiritual e transcendente, onde Eros assume o seu aspecto místico-religioso dentro da esfera do sagrado: “Na medida em que temos em nós a força de operar uma ruptura de nossa descontinuidade, o objeto se identifica com a descontinuidade e a experiência mística nos imbui do sentimento de continuidade”. (BATTAILLE, 2004, p.27)
A Natureza no poema acima é carregada de um valor religioso, visto que todo o cosmo é criação divina e que “saindo das mãos dos deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade” (ELIADE, 1992, p.99). Através do amor, da contemplação do mundo que a circunda, Sultuane descobre as diversas manifestações do sagrado. Ela assume, através das metáforas poéticas, um desejo pan-erótico de fusão com o mundo ao seu redor. Ao se deslocar dos “lugares agrestes e sagrados onde piso, / pelas savanas, florestas e montanhas que me povoam”, ou seja, do Templo da Natureza, esse eu lírico adentra o vocabulário das mais diversas religiões “sem amarras ou falsas convicções” assumindo sua busca por esse vocabulário interior que só ele entende e com ele caminha. Pelos caminhos dessa busca mística, desse erotismo sagrado, como o define Bataille e que no mundo ocidental é confundido com “a busca, exatamente com o amor de Deus […]” (p.27). Na poesia de Sutuane, esse erotismo se amplia e toma proporções diversas.
E essa busca pelo verbo criador continua na obra em estudo. No poema “Gramática” (2017, p.16), Sónia Sultuane estabelece um diálogo com o livro do Gênese da Bíblia através do quase refrão “Por ti sou”: “Por ti sou/ todos os verbos autênticos que conheço,/ por ti sou/ todas as palavras ainda por se inventarem/ por ti sou/ as sílabas da minha vida.”. Neste poema, Sultuane traz novamente a sua peregrinação místico-literária em busca do sentido transcendente da existência. O contato com o sagrado, com a vivência que transcende as meras aparências da vida cotidiana, provoca uma repercussão na linguagem:
O místico vive a certeza de uma Presença que não só o contagia, mas que dele se apodera com força e vigor, provocando uma palavra que destoa do léxico tradicional. As palavras são atormentadas para poderem dizer o que literalmente não conseguem. Violenta-se a linguagem para dela desentranhar forças inauditas e criadoras. (TEIXEIRA, 2014, p.51)
Nessa busca de descrever a experiência, o místico não necessariamente cria novas palavras, ele opera uma transmutação, uma “violência” em termos de linguagem. O que se é vivido transcende a linguagem, que como sabemos se estrutura na experiência humana. No trecho de “Em forma de gente” (SULTUANE, 2017, p. 24): “[…] Sim,/ ainda escrevo poesia/ e sou poesia que sente/ e que tem nos lábios agarradas todas/ as sílabas e as vírgulas numa fé permanente.”. A linguagem místico/poética provoca a ruptura dos paradigmas tradicionais ao instalar dentro do discurso a possibilidade da descrição do “indescritível” ou “impronunciável” da experiência com o divino:
A linguagem mística guarda a peculiaridade de uma linguagem habitada por uma experiência abissal. […] Há uma esgotante luta dos místicos para buscar expressar aquilo que os assoma, para dar alguma notícia do “inenarrável transe que lhes sobreveio”. Não ocorre um naufrágio da linguagem, mas transmutações nos vocábulos que libertam forças criadoras que levam ao limite o poder significativo das palavras. (TEIXEIRA, 2014, p.52-3)
Essas “transmutações” vocabulares caracterizam justamente a “transgressividade” da linguagem mística, o que consiste em levar o sentido primeiro dos vocábulos até o limite de suas capacidades significativas e na utilização simbólica dos mesmos. Isso vai aproximar a linguagem mística da linguagem poética. Assim, é patente a proximidade da mística e da poesia. Essa “fé permanente” que move o sujeito do poema se apresenta na sua permanente procura da palavra que irá transfigurar em divino o sentido da palavra e que contém em si todos os sentidos dessa jornada místico-erótica. Um caminho que a leva a explorar os sentidos de forma sinestésica os sentidos humanos em sua poesia.
Em Roda das Encarnações, temos como exemplo o poema “Cheira a tu e eu” (SULTUANE, 2017, p. 21): “Cheira a chuva, a inverno, a neblina, a neve, a nevoeiro/cheira a paredes da lareira em brasa/cheira a vida, a descanso, a saudade/ cheira a noite estrelada/ a savana densa, a montanha ruídos, a deserto quente/ cheira a mãe, casa, berço, colo,/ cheira a solidão/ cheira a tu e eu.” É interessante notar o uso que a poeta moçambicana faz de um dos sentidos humanos talvez menos explorado em termos de texto poético. O próprio poder associativo dos odores é por demais conhecido e já foi objeto de estudos. Como se sabe, o olfato é talvez o mais vital dos sentidos, pois está intimamente ligado à respiração que é sinônimo de vida.
O verbo “respirar”, cuja origem latina é spirare (“soprar”, “respirar”) e respirare (“exalar um sopro”). Temos na Bíblia o sopro criador que espalha sobre tudo que existe a vida. A alma, em seu sentido mais antigo, é considerada o “sopro”, o “hálito divino”, a força que anima o corpo, que lhe confere vitalidade. A ausência da respiração representa a morte. Pode-se falar, portanto, da sacralidade do ato de respirar e da sua ligação com a origem das religiões humanas, visto que são semelhantes na medida em que mantêm o homem em relação com o invisível. Trazer esse poder evocativo do odor que remete o eu lírico “a chuva, a inverno, a neblina, a neve, a nevoeiro”, “a paredes da lareira em brasa”, ou seja, tudo que a proporciona prazer ao eu lírico. Não podemos esquecer como observa Sávio R. F. Freitas, “a relação que a poetisa estabelece entre linguagem e sentidos é uma marca de seus poemas […]” (2019, p.107). No poema acima, tudo que transmite prazer pelo olfato remete ao amado: “Cheira a eu e tu”. Pelos sentidos, o eu lírico realiza associações que o fazem transcender o mero prazer carnal que vive na memória e se projeta ao seu redor.
Considerações Finais
Como pudemos observar, a poesia de Sónia Sultuane percorre os caminhos traçados por Eros em sua busca de fusão com o ser amado e o mundo. Essa procura pelo sentido maior da criação poético a singulariza dentro da literatura de autoria feminina moçambicana contemporânea. Versos plenos de um vocabulário místico-erótico trazendo a sacralidade da poesia de autoria feminina para o âmbito do transcendente, onde a busca do bem, do amor e da verdade se consolidam como uma jornada estética pelas trilhas do fazer literário.
Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo. (Trad. De Cláudia Fares). São Paulo: Arx, 2004.
CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é erotismo?. (Coleção Primeiros Passos). V. 11. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
_____. “As Incuráveis Feridas da Natureza Feminina”. In: CASTELLO BRANCO, Lúcia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1989.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. (Trad. de Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREITAS, Sávio Roberto Fonseca. “Moçambique no feminino: as dimensões poéticas do corpo na poesia de Sónia Sultuane.” In: Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ. Volume 11, Número 20, p.97-115, jan.-jun. 2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/23592/15123. Acesso em 2 Fev 2020.
KRISTEVA, Julia. Histórias de amor. (Trad. de Leda Tenório da Motta). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
NUNES, Fernanda Cardoso. Nos domínios de Eros: o simbolismo singular de Gilka Machado. 2007. 134 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Ceará, Departamento de Literatura, Programa de Pós-Graduação em Letras, Fortaleza-CE, 2007. 135 p.
OLIVEIRA, Renata Q.. “O LUGAR DE SÓNIA SULTUANE NA POESIA CONTEMPORÂNEA DE MOÇAMBIQUE. IMAGINAR O POETIZADO: UMA ESCRITA NO FEMININO”. In: Revista Arredia, Dourados, MS, Editora UFGD, v.3, n.4: 51-68 jan./jul. 2014. Disponível em: ojs.ufgd.edu.br › index.php › arredia › article. Acesso em 2 Fev 2020.
SULTUANE, Sónia. Roda das encarnações. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)
TEIXEIRA, Faustino. Religiões & espiritualidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.

Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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