
Artigo publicado na Revista Índico nº 23 das Linhas Aéreas de Moçambique – Ano 2014
Fotografias abaixo: Sónia Sultuane
De todas as viagens que fiz com certeza a mais importante foi a viagem à Índia, Jaipur. Índia dos mistérios, dos cheiros, dos encantos.
Ia à procura de mim, das minhas raízes e também à procura da tal magia e espiritualidade que se diz, por lá existir.
Ir à Índia, à procura de um templo, de um edifício específico para nos encontrarmos como tal, deve ser com certeza das coisas mais difíceis de se conseguir. Pelo menos foi o que eu senti, assim que se chega à Índia é como se entrássemos num templo, sem portões, sem paredes, sem janelas, sem rituais ou premonições.
Acabei por perceber que esse sentimento não se encontra em nenhum templo, em nenhum guru, mas sim está profundamente dentro de nós.
A Índia transformou-me em tantas coisas e nas mais pequenas coisas. À chegada encontrei uma multidão de gente, gente que nunca mais acabava, das mais diversas vestes, das mais diversas belezas exóticas e formas. Até hoje o único sítio que tinha visto pessoas “tão estranhas” assim, tinha sido no centro de Londres.
É assustadora a forma como somos logo engolidos, toda aquela confusão, gente, carros, bicicletas, motorizadas, elefantes, vacas, riquexós, cavalos, camelos, tuc-tuc, tudo no mesmo sítio, tudo na mesma direcção, mas cada um em caminhos opostos.
O trânsito é algo indescritível, mas naquele caos, sem semáforos, só mesmo nas grandes avenidas (algumas), o trânsito às vezes em contra mão, o trânsito flui. Enquanto estive por lá nunca vi um acidente.
As buzinas são fortes, um carro chega a ter dez ou mais buzinas, quantas mais tiver, melhor, quem apitar mais forte e mais intenso, mais depressa é ouvido. Nos carros estão escritas faixas de todos tamanhos e feitios a dizer:” Se queres passar buzina”.
Penso que é aí que verdadeiramente começamos a fazer e a perceber a tal espiritualidade. Todos os nossos valores caiem sobre terra. Tudo que aprendemos de repente não existe mais.
Tudo o que aprendi na vida ali deixou de fazer sentido. A educação, os princípios, ali deixaram de existir.
De repente percebi que estava num outro mundo, numa outra realidade, quando fui confrontada com a simples pergunta: você acha-se mais importante do que uma formiga?” todos os seres vivos tem o mesmo direito e espaço no universo indiano.
Aquilo a que podemos considerar sofrimento, má sorte, uma vida miserável, lá consideram o seguimento do seu Karma.
Há também uma magia no ar, no ambiente, aquela cultura milenar, aquela “coisa” que incomoda, que incomoda, porque mesmo assim há sorrisos, há vida, cheiros, cores intensas, templos de beleza indescritível, lugares milenares, saberes ancestrais, há música, há dança, há poesia, há um caos organizado, há amor, há amizade.
Jaipur é um grande “templo” com sete portões. Pintada de cor de açafrão forte, as ruas poluídas de cheiros intensos. Há temperos, há lixo, e há o próprio suor de uma cidade viva. As cores lindíssimas dos tecidos, da fruta, dos manjares feitos na rua.
As diferenças de castas com poucas oportunidades de escolhas. Tudo isso é gerido de uma forma completamente surrealista. Há uma aceitação da vida quer seja boa ou má que nunca pensei existir.
O espaço físico é dividido de uma forma única. Num espaço de 3×3 temos uma pessoa a lavar-se, uma a estudar, outra a comer, e tudo isto sem ninguém se questionar ou importunar. O respeito pelo tempo e o espaço de cada um, é sagrado.
Da viagem que fiz entre Jaipur, Pushkar, Taj Mahal, vi realidades atrozes, que não são contadas nos filmes de Bollywood nem nos folhetos de viagens. A fome e a miséria são impressionantes. Vi crianças, de dois, três aninhos a catarem do lixo para comerem. Até hoje, dos sítios que viajei, a fome que lá vi foi a mais terrível e a mais degradante que alguma vez presenciei.
Depois há o contacto humano com aquele povo que nos marca profundamente, deixamos de ser estranhos e passamos a ser uma visita, um convidado de qualquer taxista, hotel, loja, fábrica.
Somos servidos de uma forma tão preocupada que nos nossos hábitos até se torna às vezes incomodativa. O “tchai” ( chá com leite) persegue-nos em cada loja que entramos, a cada sítio, a cada momento.
A noção do que é, e quem é importante, deixa também de ser compreensível. Uma mulher deve “perder” horas a fazer compras numa loja, é de costume, é assim. O ouro, as jóias, as pratas, as pedras preciosas, os diamantes, os saris, tudo isso trás fascínio e uma beleza indescritível.
Mas depois também há outras realidades no trato humano, por exemplo, não é permitida na maioria dos templos, menos comerciais, a entrada de estrangeiros, consideram-nos sujos, dizem eles, que quando vamos a casa de banho não nos lavamos a seguir.
Por exemplo no Taj Mahal a diferença do preço do bilhete da entrada de um visitante local e de um estrangeiro é de cem por cento.
Estamos permanentemente a ser confrontados com realidades tão opostas tão diferentes.
Uma vez, ouvi uma reportagem, onde uma pessoa não indiana questionava um dos Gurus que ficam sentados nesses rios sagrados, se ele não tinha vontade de conhecer o mundo, pois ele agora estaria a ocupar o mesmo lugar que ocupou o seu bisavô, o avô, o pai, gerações inteiras, ao que ele respondeu: “para que é que eu quero conhecer o mundo, se o mundo vem a mim?”.
Percebi o que ele quis dizer quando vi as ruazinhas à beira do rio, cheias de estrangeiros de todo o mundo e de várias raças, ali sentados à busca de algo, a falarem com os gurus, muitos deles cansados, sujos, a fazerem a tal busca externa do “EU”.
Impressionou-me também a harmonia com que as religiões se juntam e se separam. Em Pushkar, onde há um rio e uma parte sagrada, o mesmo rio é usado para os rituais das várias religiões, o que divide-os são os “templos” erguidos pelas escadas que dão ao rio, mas a água é a mesma a fé a Deus é a mesma.
É isso que a Índia me provocou, tirou-me dos limites, fez-me questionar a minha vida espiritual e material. Porque quando vi e senti aquela realidade, senti-me felizarda, milionária, afortunada abençoada. Se o meu choque interior não fosse devidamente balanceado, acredito que estaria perdida. O templo está dentro de nós e não fora. A nossa grande verdade e a nossa grande cura só nós é que a possuímos. A nossa riqueza não são os bens que não podemos carregar connosco, mas sim a riqueza que esta dentro de nós.
Ou saímos da índia e tornamo-nos pessoas melhores mais gratas à vida e a Deus, ou voltamos com uma grande revolta de que mundo é este. Como temos sempre duas escolhas, dois caminhos, nós e que teremos que escolher em que templo queremos habitar, com que sentimentos queremos viver e que bens queremos carregar dentro de nós.