Cuba dos cubanos

Artigo publicado na Revista Índico nº 22 das Linhas Aéreas de Moçambique – Ano 2013

Fotografias abaixo: Sónia Sultuane

A viagem foi decidida em cima do joelho, em dez dias, havia por um lado a vontade de explorar o desconhecido, mas, por outro, os afazeres profissionais, seria uma longuíssima viagem, vários aviões, esperas em aeroportos, mas como sempre, o bichinho do desconhecido é sempre mais forte.


A viagem Maputo-Joanesburgo foi tranquila, e mais tranquila ainda Joanesburgo-Paris, feita na companhia aérea francesa, das poucas que oferece um serviço com qualidade, conforto, simpatia e requinte.


Chegada a Paris uma espera longa de cinco horas, o que deu tempo para ficar mais do que informada sobre Cuba, vista e sentida pelos olhos e pelos sentimentos dos jovens, já que tive o prazer de encontrar na sala de espera, uma das selecções nacionais de desporto feminino daquele país. Estranhamente houve logo aquela empatia, aquele sentimento de proximidade, assim que se diz, que se é de Moçambique, tornamo-nos irmãos, filhos, melhores amigos do povo cubano, o respeito que há em relação ao povo moçambicano é indescritível. É comum ouvir, o meu irmão, o meu primo, o meu pai, o meu vizinho, o meu amigo, o amigo do meu amigo, um parente do parente, esteve em Moçambique. A admiração que os cubanos têm para com os moçambicanos é imensurável.


Aterrámos no Aeroporto de Havana, devo dizer que estava mais do que exausta fisicamente, foram quase vinte e quatro horas sem parar, sem dormir. A beber profundamente da vida. Estava completamente desperta para a minha descoberta Cuba-Havana. Com a idade e com as várias viagens que fiz, aprendi a não ter grandes expectativas dos sítios para onde viajo. Há sítios que realmente só são belos, nos livros, nas fotos, nos filmes, mas vê-los ao vivo e a cores são uma grande decepção.

O motor do avião silenciou, tudo parou, as portas abriram-se e entramos no edifício do aeroporto, pequeno. Era um edifício cansado, remeteu-me a algum lugar, a algum sítio que já tinha estado há muitos, muitos anos atrás. Na Migração, a mesma burocracia como de tantos outros países. O processo da bagagem, a troca da moeda para a moeda local, há duas economias, há dois pesos, duas medidas, os taxistas, os carregadores, toda aquela confusão que se encontra nos aeroportos em países mais pobres, mais carenciados.


Assim começa a minha aventura, saio do edifício do aeroporto e sinto um calor mais húmido, mais cansativo, vejo um parque de estacionamento onde estavam os táxis, facto que me remeteu à cidade da Beira, nem sei porquê, estranhamente houve muitos sítios que me remeteram às nossas províncias. Entrei num táxi da marca Lada e lá fui eu rumo ao hotel. Do aeroporto à cidade são talvez vinte e cinco minutos de carro. As ruas, algumas abandonadas, sem nada, paragens de autocarros desertas, destruídas, palavras de ordem nas paredes. Sente-se profundamente que o tempo parou. Já me tinham dito que Havana era assim. Tudo aquilo remeteu-me a uma vida que conheci há vinte, trinta anos atrás. Tinha a cabeça às voltas, era como se tivesse entrado numa máquina do tempo.


Passadas três horas, já me sentia em casa, tinha “arranjado” família, amigos. Devo dizer que o povo cubano foi dos povos que mais gostei de privar, de partilhar. Devia haver mais bloqueios pelo mundo, talvez os homens aprendessem a ser mais humanos, mais generosos. Em Cuba com tão pouco se fazem milagres. O sorriso, a humildade e a humanidade com que fui tratada não tem preço.

Nos sete dias que estive em Havana, vi pouco, sim, mas tive o privilégio de sentir um pouquinho da capital cubana, mais da Havana Velha, vi “outras Havanas”, mas a que mais me tocou foi aquela Havana Velha. Vi o sonho de Che Guevara, de Fidel Castro, senti o sonho dos cubanos. Percebi Ernest Hemingway, o seu refúgio para mergulhar nos seus romances complexos e profundos. Senti como se Havana fossem duas histórias, duas vidas, duas realidades. Havana fez-me lembrar uma mulher que parece muito frágil, mas ao mesmo tempo com uma força brutal, às vezes parecia uma cidade abandonada, mas depois via-se o que um dia foi e o que um dia virá a ser. Parecia desprotegida, mas depois há toda uma demonstração do seu arsenal bélico. Temos uma Havana profundamente religiosa, culta, de gente quase toda formada, altamente capaz, vemos um povo profundamente orgulhoso dos seus valores, da sua cultura com os seus ideais altamente enraizados.  


Os museus contam a história, fazem chorar, fazem rir, fazem troça, dizem piadas. Os carros que povoam as ruas são autênticas relíquias em qualquer parte do mundo. Os seus ídolos são quase sangue do seu sangue. A arte é vida, é sagrada, os pintores, os músicos, os escritores, os dançarinos, etc. são “quase deuses” para o povo cubano. Pablo Neruda escreveu (Ahora es Cuba), John Lennon podia quase ter dedicado ( “…imagine all the people living life in peace…”) aos cubanos, e tantos outros que foram e são respeitados. Dança-se a qualquer hora, pelas ruas, nos bares, nas praças, à noite ouve-se música sentados nos muros, nos degraus das entradas das casas, a música que também é alma desse povo. Conversa-se com os vizinhos, trocam-se favores, toda a gente conhece toda a gente. É a vida de um bairro do tamanho de uma cidade. Todas aquelas ruazinhas da Havana Velha parecem fazer parte de um puzzle, que ostenta uma beleza inexplicável.

A bela marginal, dos passeios ” nocturnos obrigatórios ” a hora do canhão (às 21 horas) ou depois do jantar. Os corpos muitas vezes estão demasiado desnudos, mas os sentimentos ,esses, estão colados à flor da pele. Naquele paredão também se sonham vidas e amores.


Havana mesmo com aquele ar de destruída de velha, é uma das cidades mais belas que vi na vida, de cores, de jardins, de gente com garra, com alma, de igrejas belíssimas, tem uma das baías mais deslumbrantes que os meus olhos alguma vez viram, de onde Che Guevara deve ter tantas vezes sonhado uma Cuba livre de perseguições. Havana tem alma, guarda segredos, medos, carrega nos seus majestosos edifícios e monumentos, história. É uma cidade digna de ser considerada património mundial, digna de cenários para grandes filmes de Hollywood. Escolhi ficar na Havana Velha, mesmo que com alguns “puxões de orelha”, porque queria sentir as pessoas, o dia-a-dia, as histórias, as carências, a esperança de uma Cuba melhor. Vi remodelações, reparações profundas na cidade, espero sinceramente, que o desenvolvimento não mate o encanto único de Havana.

Oxalá um dia possa regressar a Cuba e encontrar ainda aquela magia que só senti ali.

Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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