Chá de maçã

Artigo publicado na Revista Índico nº 26 das Linhas Aéreas de Moçambique – Ano 2014

Fotografias abaixo: Sónia Sultuane

Só vislumbrava uma boa cama e uma profunda noite de sono. Simpaticamente o primeiro contacto com o rececionista  no hotelzinho que ia ficar foi o habitual “Welcome”. Mas houve algo logo a seguir que me fez sentir em casa, no aconchego da família. Um saboroso chá de maçã. Viciei-me nesse chá!!!

Tinha pressa de acordar para descobrir e sentir a tal e tão falada cidade de Istambul. O pequeno-almoço era servido no terraço do hotel ( como é em vários hoteizinhos) ali na zona do Sultan Mehmed ” velho Istambul” . Tive logo pela manhã uma visão deslumbrante! Do outro lado podia avistar uma outra cidade, o mar, os barquinhos perfilados, a neblina matinal de um começo de inverno. Era o que me separava do outro mundo. A cidade repleta de mesquitas, cada uma mais bonita que a outra, umas mais famosas, outras nem por isso. O chamamento para a oração as horas exactas, várias vezes ao dia, fez-me entender que mesmo com todo o modernismo, estava num país muçulmano. O chamamento em cada mesquita vai enchendo o ambiente…é hora de rezar…é hora de cumprir a obrigação de um bom muçulmano. A minha aventura começa pelo Sultan Ahmed Complex, popularmente conhecida por mesquita Azul, por causa dos mais de 20.000 azulejos azuis que pintam as paredes do seu interior. Mesmo à sua frente encontra-se a poderosa Hagia Sofia ( significa sagrada sabedoria); foi construída entre 532 e 537 no Império Bizantino e foi considerada por quase mil anos a maior Catedral do mundo, até ser construída a catedral de Sevilha. Os olhos e o coração são pequenos demais para guardarem e captarem tamanha beleza desse lugar. Foi igreja ortodoxa, foi igreja católica, foi mesquita, foi espaço de culto dos pagãos, esteve fechada por uns tempos  e depois voltou a reabrir em 1935 como museu. A restauração que esta a ser feita tem vindo a trazer a história e as marcas de cada tempo de cada religião. Da sua transformação de igreja para mesquita várias figuras foram escondidas, com arte e descrição pelos muçulmanos já que estes não acreditam em figuras. Fiquei impressionada, (mesmo sabendo que estava num país altamente moderno e liberal,  não deixava de estar num país muçulmano) com o facto de vermos hoje, no altar, o Menino Jesus sentado ao colo de Maria, e dos dois lados opostos a essa figura, os grafemas árabes com o nome de Maomé e dos califas do Islão, é forte, é demolidor de qualquer convicção. Arrepiou-me, o tamanho a beleza e a grandeza desse lugar, as orações que ali foram feitas a fé que ali foi praticada de formas tão diferentes por culturas tão diferentes, mas com um único propósito: adorar Deus. É realmente um lugar sagrado.

Istambul é uma cidade estupidamente bela e grande! os mercados, as ruazinhas que nunca mais acabam, sobem, descem, cruzam-se. As lojas nas sobre-lojas, nas caves, ou nos andares dos prédios que se encontram por essas ruazinhas.

O grande bazar, é provavelmente o maior e dos mais antigos mercados cobertos do mundo. Tem sessenta e quatro ruas e estradas, tem vinte e duas portas, e cerca de três mil e seiscentas lojas. Aqui  trabalham perto de vinte mil pessoas, que recebem meio milhão de visitantes por dia dependendo da época do ano. Os tapetes, as joias, a chiça, as peles,  a lingerie, os lenços, as lojas de roupa de cerimónia para casamentos, as malas, os sapatos, as grandes marcas mundiais que possamos imaginar, o ouro pesado a quilo, de todos os feitios e tamanhos, um pouco de tudo que se precisa na vida.

O mercado das especiarias, com temperos de todas as cores e feitios, os doces, as guloseimas, as frutas secas, os chás, os cafés, onde o tradicional e o moderno se cruzam e coabitam. O mundo europeu misturado com o mundo asiático.

No Bósforo, o estreito que liga o mar Negro ao mar de Mármara, que marca o limite dos continentes asiático e europeu , a tradição e o modernismo, a Ásia e a Europa, perdemo-nos.  Vemos o mundo a duas cores a dois ritmos, a dois saberes a duas perspectivas. Percebe-se onde há riqueza, onde há poder, onde a história, onde a saber.

 Percebe-se onde a vida começou, e no horizonte sonha-se com o mundo que ainda virá. Os arranha céus, a rasgarem o céu, as torres  todas envidraçadas, a fazerem contraste com o betão antigo com séculos de história.

Visitar Topkapi Palace, e perceber como eram realmente os reinados, a beleza e a riqueza com que viviam, é desvendar  um dos diamantes mais raros da história e do tesouro imperial da época. Pode ver-se ainda os pertences do profeta Maomé, a sua manta, e outros pertences encontrados na sua sepultura. 

O harém que faz parte do palácio, de tamanha beleza feminina, as flores, os vitrais, as lareiras arquitectonicamente inimagináveis para tempos tão longínquos, as loiças, os vasos chineses, japoneses, italianos, os ouros, as pratas, os relógios de bolso, de parede, as coroas, as espadas, as vestes de cerimonia  de guerra, as pinturas, as obras de arte, a beleza e a sofisticação com já se vivia a  há séculos é impressionante.

Soberbo é o Dolmabahçe Palace, só em filmes de orçamentos milionários talvez se possa ver e nos  possam emprestar novamente aquilo que os nossos olhos  observaram ali ao vivo. Beleza atroz (é proibido fotografar, em todo o palácio, e as visitas ou são visitas guiadas ou em grupos, não se pode visitar sozinho o palácio), os ouros, os cristais, os tapetes, as pinturas, os retratos dos imperadores, príncipes, o mobiliário, obras de arte indescritíveis. Todas as divisões do palácio tem uma beleza única, mostram beleza, poder, ostentação, celebração, com mais de duzentos quartos e vinte e muitas salas. Em alguns salões do palácio fiquei de queixo caído: o salão Seraglio Ceremony Palace, o salão Mabeyn, o salão de espera (Acceptance lounge), até os salões ou compartimentos mais simples, os simples vitrais, os candeeiros. Mas onde é mesmo de perder o ar (porque a  beleza também dói!!!) é no salão principal do palácio, Muayede lounge. Não conseguiria descrever tamanha beleza! Com uma cúpula de 36 metros de altura,  diz-se que foram usadas catorze toneladas de ouro para ornamentar só o tecto. Na parte superior existe um balcão onde se sentavam os convidados ou diplomatas e a orquestra do palácio.  Este salão tem uma área de 2000m2, um lustre de cristal no centro, de quatro toneladas que é o maior  da Boémia, e onde se pode ver um dos  maiores tapetes do mundo, a sala tem 56 colunas,  simboliza sem dúvida a grandiosidade do império Ottoman.

Entramos num conto de fadas,  queremos de alguma forma também viver aquela história, fazer parte daquele lugar maravilhoso.

Cai a noite melhor é  mesmo ir para o barzinho do hotel, sonhar ao nosso tamanho, ao tamanho da nossa realidade,  e observar os turistas, de um lado e de outro, passeando, sentando-se e levando a vida ao seu gosto, fazendo a sua história, saboreando, o chá turco ou o chá de maça.

Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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