Na primeira pessoa! O Cancro e eu!

NO MATTER WHAT!!!
Não importa o quê!!!

Não tenho medo de morrer, tenho medo de não viver o próximo instante. Sónia Sultuane

No dia 22 Dezembro de 2015, foi-me diagnosticado o segundo cancro, este no sistema linfático. Que grande presente de Natal. Ninguém esta preparado para ouvir novamente: Estas com cancro!!! Outra vez?! e este com uma gravidade muito maior, de um cancro para o outro estava na tal janela dos cinco anos. Teria que fazer quimioterapia e radioterapia. Estava agora com quarenta e cinco anos. Pensei, desisto? Luto? Terei hipóteses? Vou sofrer novamente? Tinha acabado de perder uma irmã, também com cancro, tinha um turbilhão de dúvidas de medos de incertezas, mas a minha teimosia e o meu amor pela vida fez com que fosse a luta. Enchi-me de coragem e determinação e no dia 6 de Janeiro de 2016 comecei os meus tratamentos na África do Sul, para onde fui viver durante seis meses, longe de casa, da família mais alargada e dos amigos.

Primeiro vem o… outra vez eu? porquê? e depois vem o pânico, o medo, o desespero!!! o medo de morrer.

O cancro linfático, é o cancro que afecta os gânglios linfáticos que temos pelo corpo. Em linguagem mais simples que afecta o sangue branco do corpo.

Quem tem cancro é porque é mau, porque guarda rancor no coração, porque é mal resolvido/a. Os bebés nascem com cancro e as crianças ficam com cancro também!!! eles tiveram tempo de odiar ou guardar qualquer rancor por alguém? Ouvi isso várias vezes!!!Não deixe que a maldade, a estupidez e a ignorância dos outros, ainda lhe afete mais, já chega a sua condição clínica, mental, espiritual e também financeira com certeza, para que ainda aceite gente tóxica perto de si. Não deixe nem permita que gente assim, chegue perto de si, pois tornam-se piores do que o próprio cancro. Eles não sabem o que dizem, nem nunca estiveram na sua pele.

Há vários e diferentes tipos de cancros e os efeitos são diferentes de pessoa para pessoa, eu tive:

Estive anos a sofrer sem saber o que tinha
Tinha muito cansaço
Tinha muitas infecções urinárias repetidamente com sangue
Perdi muito peso
Perdi a massa muscular
Perdi o apetite
Estava sempre com sono, bastava encostar-me a qualquer sítio adormecia abruptamente
Tinha desmaios estranhos (quase que fechar os olhos e abrir em seguida, e perdia os sentidos e a noção de que tudo tinha desaparecido).
Tinha um mau estar geral sem explicação

Há diferentes tratamentos, dependendo do cancro que se têm, onde esta localizado, e o estágio do mesmo, que vai do estágio 1 (o mais leve) até ao estágio 5.

Quimioterapia: geralmente são injeções intravenosas, o tratamento pode ser feito em minutos ou podem ser horas seguidas. Pode ser um único tratamento, num único dia, ou vários dias, podem levar meses ou anos. Depende do cancro e do estágio do cancro.

Eu tive que fazer várias sessões de quimioterapia e o meu tratamento durou alguns meses. Dos muitos sintomas que tive o mais assustador é sentir-mos o esvaziar da vida fisicamente, e espiritualmente o medo instala-se a cada sessão, temos que ter uma fé muito grande e nunca deixar que Deus desapareça de dentro de nós, temos que nos agarrar a vida incansavelmente durante o tratamento.

Tive uma reação pouco usual quando fazia as minhas sessões de quimioterapia, assim que a droga propriamente dita entrava nas minhas veias tinha um ardor terrível (como se me estivessem a injectar álcool pelo corpo, era horrível, depois de três horas a receber medicamentos nas veias, completamente saturada e cansada, a última hora que era a tal da droga, queria sempre fugir, era como entrar numa banheira cheia de álcool e eu toda cortada, chegava a gritar e a chorar as vezes de tanta dor), e tinha outra reação, começava a coçar a cabeça e o peito, acabei por me ferir e fiquei muitos meses com essas zonas todas negras. Chega a um momento que as veias dos braços não aguentam mais e “fogem” e passamos a fazer o tratamento nas veias das mãos, a dor é terrível. Alguma vez pensei em desistir?, Várias! mas a vontade de viver sempre foi maior do que a vontade de morrer.

Radioterapia: Tratamento através de raios laser (radiação ionizante), o tratamento pode ser minutos ou podem ser horas seguidas. Pode ser um único tratamento, num único dia, ou vários dias, pode levar meses ou anos. Depende do cancro e do estágio do cancro.
Eu tive que fazer várias sessões de radioterapia também.
Entramos num género de túnel e são direcionados raios laser, para entendimento mais comum, imaginem como se fossem fios de luz, projectados no nosso corpo por um mecanismo qualquer na própria máquina, e são injectados medicamentos para matar as células infectadas. Não há injeções visíveis nem dor.
Os efeitos secundários também variam de pessoa para pessoa, no meu caso como o gânglio retirado foi no pescoço, tiveram que fazer um molde da minha cara em silicone para que eu pudesse usar cada vez que fazia as sessões, a sensação era estranguladora e claustrofóbica, deitavam-me, metiam a máscara e depois apertavam com uns parafusos a máscara a maca na zona da cabeça dos braços e dos ombros, para que eu não me mexesse um milímetro sequer durante o tratamento, pois corria o risco de queimar os olhos, a boca ou outros órgãos. É importante e fundamental ficar o tempo todo quieto quase que morto e com os olhos fechados. Devido a essa exposição e como eram queimadas as células na zona do meu pescoço, fiquei com a boca e a língua ligeiramente queimadas, com menos saliva, sem paladar, com o pescoço e o queixo queimados quase um ano. Durante o período que se faz radioterapia, e até alguns meses depois, não podemos usar cremes nem perfumes, onde se estava a fazer radioterapia.

Alimentação
Tudo sabe a nada, sabe a metal. Sal, temperos, piri-piri, foram proibidos durante o tratamento. A minha alimentação era mais baseada em:
Fruta
Legumes
Vegetais
Canja de galinha
Papinha de milho
No geral comia muito, quase dez, onze refeições por dia. Tinha sempre muita fome, como se tivesse um buraco na estômago, tive uma reação diferente de muita gente.
Tinha uma pilha de medicamentos, que tinha que tomar todos os dias, além dos tratamentos que recebia no hospital, as quimioterapias e as radioterapias, por isso tinha que beber muitos líquidos diariamente e constantemente para limpar o organismo de tantas drogas.

Efeitos fisícos
Perdi o cabelo de uma forma horrível, fui dormir com os meus cabelos longos, e na manhã seguinte acordei com cabelos espalhados pela almofada pela cama, pelos lençóis, por todo o lado, lembro-me de ficar horrorizada a olhar para aquele cenário, parecia um filme, tocava na cabeça e o cabelo caía aos montes, fiquei cheia de buracos pela cabeça, nesse mesmo dia cortei o cabelo curtíssimo, mas não resultou, continuava a cair, no dia seguinte rapei todo o cabelo.
Perdi as pestanas
Perdi sobrancelhas
Perdi os pelos púbicos e no geral no corpo
Tinha dores nos ossos e no corpo
Tinha uma magreza esquelética
Perdi a memória
Sangrava muito das gengivas
O corpo ficou lento
Faltava a visão
Tinha enjoos constantemente
Perdi o paladar
Tive diarreia, tive prisão de ventre gravíssima
Tinha um gosto de metal constantemente na boca
Sede extrema sempre
Alguns vómitos
Cansaço nos braços e mãos acompanhado de dores horríveis,
Tremura das mãos
Calor insuportável principalmente ao comer
Cansaço geral profundo
Muito pouco sono profundo, dormia entre intervalos curtos de 15, 30 minutos, estava constantemente a acordar
As unhas ficaram fracas e pretas
O corpo cheirava mal a podre (era o único cheiro que conseguia sentir porque vem de dentro de nós), os cheiros no geral desaparecem, deixa-se de sentir cheiros
A boca ficava sempre suja, farinhenta e cheirava mal, tinha que lavar várias vezes por dia
Tinha que apanhar uma injeçcão para os ossos na barriga, ficava louca de tantas dores durante o tempo que o medicamento estava a fazer efeito, sentia os ossos como que a baterem uns contra os outros, e porque tinha que levantar-me ou ir a casa de banho, ou comer a dor era indescritível. As vezes já não tinha forças nem vontade de chorar mais por causa das dores, as lágrimas escorriam sozinhas de tanta dor.
Tomar um simples banho levava uma eternidade, doía tudo, o sabonete nas mãos era como se estivesse a carregar um bloco, do esforço que tinha que fazer para manter as mãos equilibradas
As partes íntimas secaram e doíam muito
A pele ficou seca e gretada e também doía muito, usava excessivamente cremes no corpo para não ter dores
O Suor triplicou

Efeitos psicológicos
Perdi algumas vezes a auto-estima
A minha identidade
Perdi algumas vezes a fé
Isolei-me profundamente dos outros, da minha realidade, senti-me a apodrecer, a envelhecer, a morrer aos poucos

Família e amigos
Não há nada mais importante que o suporte da família, a sua generosidade, humanidade, humildade, o aceitar das piores coisas quando se cuida de alguém doente, os cheiros nauseabundos, limpar os vómitos, dar banho, dar de comer, aceitar pacificamente a reclamação constante das dores, os gritos, a mudança de humor, etc.
Os amigos são muito importantes para nos mantermos ligados ao que somos.
Infelizmente tenho que referir como muita tristeza e uma certa leveza, esposos/as, filhos/as, irmãos/as, muitas vezes abandonam quem tem cancro. Eu fui abandonada em certa medida, sei o que dói e o que doeu, hoje tranquilamente, penso que estes actos não passam de um acto profundo de egoísmo, pois estas pessoas não se revêem e não conhecem o sentido de amor ao próximo. Se acreditarmos em Deus eles carregarão uma cruz muito maior para o resto da vida, do que o próprio cancro representa para quem passa por ele, um dia o cancro é tratado ou a pessoa morre se assim tiver que ser, mas o sentimento de ter abandonado alguém será que passa? Será que morre?Espero que sim!

Medo e fé
Estamos constatemente com medo de morrer.
Vivemos só aquele exacto momento, pois não há projectos para amanhã, já ter projetos para a próxima hora é um privilégio, não ter um vómito nos próximos cinco minutos, não ter dores durante uma hora, não ter dores de cabeça, ou a sensação de que estamos a desfalecer.
Vivemos numa solidão profunda, questionando tudo.
Os únicos companheiros são Deus, os nossos médicos e os nossos medicamentos.
O que pensava durante cada sessão que tinha que enfrentar com a sensação de morte umas vezes dolorosa outras silenciosa? que ia vingar-me da vida, de Deus e de todos que me tinham abandonado, mostrando que queria viver, ainda, e muito, e que se pensavam que eu ia morrer, enganavam-se, afinal eu ainda tinha sonhos e projectos, a arte salvou-me muitas vezes, sonhei livros, exposicões, viagens, aquilo que gosto de fazer e que me faz ser quem sou, dizia a mim mesma, és forte és capaz, vais superar mais este obstáculo na vida, para seguires com os teus sonhos.
Depois da primeira Quimioterapia fui parar as urgências do hospital, porque o meu estômago parou de funcionar, não podia beber nem uma gota de água que me doía imenso o estômago, como se estivesse a beber pedras, estive três dias entre a vida e a morte. O médico na terceira noite veio ter comigo e disse-me que a equipa médica já não sabia mais o que fazer, pois ninguém consegue viver por tanto tempo assim. Pediu-me friamente que falasse com a família e amigos… não precisava de me dizer mais nada…entendi. Quando ele saiu do quarto chorei baba e rancho, liguei a minha família, falei com três ou quatro pessoas, sem dizer muito, rezei, pedi perdão a Deus, a mim, e a todos que eu tinha feito mal, e pedi a Deus para perdoar a quem me tinha feito mal também. Chorei por não ter amado mais algumas pessoas principalmente os meus pais, e adormeci. Acordei de madrugada com um cheiro nauseabundo no quarto e ouvindo toda a gente a tossir e a querer vomitar nos Cuidados Intensivos, era eu!!!o estômago voltou a trabalhar, estava coberta de fezes eu a cama toda, nem consigo descrever, as minhas máquinas começaram a apitar porque assustei-me e comecei a passar mal, os enfermeiros acalmaram-me pacientemente, levantaram-me e foram buscar sacos pretos do lixo, tiraram a minha roupa e a roupa da cama e foi tudo para o lixo, estava a apodrecer por dentro. Meteram-me em baixo do chuveiro e deram-me banho, meteram-me fraldas e estive assim mais umas vinte e quatro horas. Dois dias depois estava fora do hospital graças a Deus.

Um dia o martírio acaba, como tudo passa e acaba nesta vida, e volta tudo mais bonito e saudável, a pele, as unhas, o corpo, o cabelo, como se fôssemos novamente bebés, rejuvenescemos, até o sentido da vida muda, é uma oportunidade de recomeçar, é o reerguer da morte, se ficamos com sequelas? ficamos! e ficaremos para o resto da vida sejam elas físicas ou espirituais, se fisicamente voltamos a ser os mesmos?não! claro que não! se pensarmos que passamos o tempo todo do tratamento a matar o nosso organismo com as drogas da quimioterapia e a exposição da radioterapia para fazer novamente o restart ao corpo, então sabemos que tivemos que “acelerar” demasiadamente o motor! só não vai aproveitar novamente a vida quem não sentiu a morte a vir buscá-lo!
Hoje vivo a vida ligeiramente diferente com alguns cuidados fisicos, principalmente com os meus ossos, a exposição ao sol, a minha alimentação. Mas vivo uma vida dentro de toda a anormalidade, normal. Há que ter fé, há que acreditar cegamente em Deus seja ele qual for.

Estou ainda a reconstruir a minha nova identidade o meu novo EU.


No Matter what, I am proud and I am keep smiling

Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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