Aurélio Ginja

RODA DAS ENCARNAÇÕES OU A ESPIRITUALIDADE NO DORSO DA POESIA

Aurélio Ginja – Mestre de Educação

Estudo do livro Roda das Encarnações 2016.

Constata-se que, nesta Roda das Encarnações (2016), Sónia Sultuane, abeira-se -se de uma das fontes mais ancestrais da poesia, produzindo uma poética eminentemente religiosa. Esse facto, em si, traz à superfície a dimensão transdisciplinar da literatura, que interpenetra a matriz religiosa, como um dos eixos da cultura humana em geral.

Para este diálogo transdisciplinar vou convocar vastas vezes a voz de Leonardo Boff, mestre em matéria de Espiritualidade. Por isso, neste encontro de leitores, proponho-me abordar a transcendência e a espiritualidade presentes na poesia de Sónia Sultuane. Com efeito depara-se o leitor da poesia constante neste livro, com temáticas existenciais e transcendentes, as quais nos impõem e propõem reflexões sobre o mundo, a partir de um ângulo de visão impregnado de uma certa espiritualidade.

Aliás, de acordo com Leonardo Boff “a espiritualidade é umas das fontes primordiais de inspiração, de esperança e de auto-transcendência do ser humano”, cito de memória por ser uma frase, que um amigo, professor de Espiritualidade, repetia regularmente, nas frequentes conversas que estabelecíamos nas tardes matolenses.

O título Roda das Encarnações remete para a reencarnação, como uma visão espiritual que coloca ao ser humano a reflexão sobre a sua a tremenda responsabilidade face as consequências dos seus actos, pois reencarnação relaciona-se com a ideia de justiça e à lei do karma, constituindo, tal como a ressurreição uma forma de interpretar o que está além do espaço e do tempo. Temos para nós que cada uma das concepções tanto a da reencarnação como a da ressurreição pode ensinar à outra a sua diferença, o que a distingue, como forma de conceber o absoluto.

Segundo Boff (2001) “a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão profunda do humano, como elemento necessário para o desabrochar pleno de nossa individuação e como espaço de paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais.” Nesse âmbito podemos conceber a espiritualidade como algo que confere sentido à vida, sendo, por conseguinte um conceito mais amplo que religião, uma vez que esta é uma expressão da espiritualidade.

Assim, tal como com Marcelo Saad (2001) o refere, se a Religiosidade comporta um sistema de culto e doutrina que é compartilhado por um grupo, implicando posturas comportamentais, sociais, doutrinárias e valorais específicas, a Espiritualidade está relacionada com o transcendente, com questões definitivas sobre o significado e propósito da vida, e com a concepção de que há mais na vida do que aquilo que pode ser visto ou plenamente entendido.

Há, nesta Roda das Encarnações um sujeito poético, que persegue um itinerário que se manifesta através da transcendência e da espiritualidade, resultando numa literatura epifania, em que as palavras são sacralizadas e dimensionadas ao status de instrumento de revelação divina, sagrada ou espiritual. Ocorre aqui um exercício poético em que o sujeito (poético) se coloca diante de si mesmo e da poesia, adoptando uma visão transcendental dela e do mundo através da espiritualidade com que mira e questiona a si própria e ao meio que a rodeia. Leiamos, a propósito o poema intitulado “Vocabulário”:

“Por todos os lugares agrestes e sagrados que piso/ Pelas savanas, florestas e montanhas que me povoam,/ caminho com as palavras impressas em meus pés/e viajo no mundo a qualquer hora do dia ou da noite/falo em qualquer língua/rezo as palavras das mais diversas religiões/sem amarras ou falsas convicções/no meu coração vive todo o vocabulário/que só eu entendo e comigo caminha /um vocabulário todo ele sentimento, esperança e perdão/para que o amor não morra/esquecido em qualquer canto do universo.” Talvez o pressuposto, que dita esta opção seja o facto de a fé, pela sua natureza, estar para além da razão. A fé é algo para ser experimentado, encarnado. E, em certa medida, sem o contexto da fé, o dogma constitui por essência algo que confina, congela, algo desprovido de vida, a linguagem poética, vai mais além, pois, pelo contrário, tem o poder de sugestionar, de descrever além dos simples conceitos, é viva, sempre passível de novas interpretações dependendo de quem a leia, pois a poesia é vida, é encarnação e relaciona-se, profundamente, com a vivência do amor, com a experiencia do inefável, a experiência de Deus.

Em forma de gente que sente/perguntaram-me ainda escrevo poesia/se ainda sinto a brisa das palavras/se ainda sinto as noites gélidas/ e as tempestades nos lençóis brancos/(…)Sim ,/ainda escrevo poesia/e sou poesia que sente/e que tem nos lábios agarradas todas/as sílabas e as virgulas numa fé permanente.

A intuição artística da autora alia-se à espiritualidade na medida em que, a sua poesia, para além de penetrar na realidade, busca transcender o que os sentidos captam, procurando interpretar o mistério oculto nas coisas. Disso resulta uma poesia simples que brota das profundidades da alma humana, poesia que funde a aspiração de dar um sentido à própria vida com a apreensão fugaz da beleza e da coesão íntima e misteriosa das coisas.

Sou os olhos do universo/a boca molhada dos oceanos/as mãos da terra/sou os dedos as florestas/o amor que brota do nada/sou a liberdade das palavras quando gritam e rasgam o mundo/(…) sou o cosmos/ vivendo na harmonia da roda das encarnações.

Como dizia António Severino “ Existem algumas crenças que sugerem que cada mínima palavra dita nunca mais se perde. Não é só porque ela ficou gravada em algum aparelho, guardada na memória de alguém ou escrita depois em uma folha de papel. Não. É bem mais que isto. Cada palavra dita crêem alguns fica viva no Ar, na Terra, no Cosmos.”

Aliás, como diz Ong, em muitos povos, onde predomina a cultura da oralidade considera-se que as palavras estão dotadas de uma potencialidade mágica eventualmente concebem a palavra como necessariamente falada, proferida e, portanto, dotada de um poder, tal que: porventura, fazendo jus a esta visão, Sónia Sultuane, no poema “Velhice”, nos alerta:

Quando souberes que teus sentimentos, actos e gestos/serão tão leves como as palavras deitadas ao vento/sem rumo, sem perdão/então nunca dirás o que não é verdadeiro/nunca te esqueças que serão milhares de palavras /que escreverão a tua história quando fores velho.

Ainda na senda da espiritualidade a que nos referimos, a morte configura-se como um tema presente, na medida em que, conforme assinala Jean Yves Le-loup, eminente psicólogo transpessoal “Todo homem confrontado com a iminência da morte pode ser levado a se formular questões de ordem espiritual (qual é o sentido da minha vida? Haverá uma transcendência? O que acontecerá ao meu ser?). Como é grande a solidão quando não conseguimos expressar tais questões, compartilhá-las com os outros! Estaremos prontos para escutá-las?” Em contraste com a finitude da existência, diante da nossa dimensão de passantes, diante da impermanência dos seres e das coisas, há aspirações inauditas no coração humano, desejos infinitos, face aos quais, com palavras simples, mas revestidas de fé, de esperança, de amor, a autora nos confessa:

Sei que quando o meu dia chegar, guardarás no teu jardim celestial/uma sombra para eu me sentar/para contemplar a vida que vivi/os meus risos, os meus sonhos, os amores e desamores/os meus pais, os amigos ou meus irmãos de sangue e os outros também(…)os teus portões se abrirão para que eu entre, na tua divina mansão/carregando nas minhas mãos somente flores para te oferecer/os meus pés de leve pisarão no teu chão purificado/e o meu coração ira bater ao som do Adhan, Mashallah!

No poema acima aludido, a autora, evocando mais uma vez a espiritualidade de que se reveste o seu acto de escrita, faz-nos lembrar que tudo, nesta vida passageira e contingente, pode assumir uma dimensão simbólica e sacramental, ao ponto de, na hora derradeira, nos fazer retornar ao percurso vivido, reenviando-nos para tudo quanto nutre(iu) a nossa interioridade mais profunda.

Como diz Boff, a espiritualidade nos permite vivenciar a morte “como parte da vida, como invenção da própria vida para dar um salto, para formas mais altas de vida, como o momento alquímico da grande transformação para poder estar, de facto, no Todo e no coração de Deus.” Auscultando as profundezas da sua interioridade o ser humano percebe que dos abismos interiores emergem sentimentos, fluxos apelativos de amor, de compaixão, de identificação com os outros e, particularmente, com o grande Interlocutor que as religiões geralmente designam de Deus. Esta factor gera sentimentos de identificação, de gratidão, mas também de interrogação face aos densos mistérios da existência dentre os quais se destaca o da dor, que no contexto da reencarnação é explicado como algo derivado do Karma.

A fome com cara de menino, tocou-me/os pés e o coração. A fome no corpo faminto/de um bebe inocente/sem idade ainda para entender/esse Karma que carrega/nem para saber que cada vida exige/uma profunda aprendizagem da alma/neste universo onde milhões de pessoas por vezes/são iludidas sem se aperceberem/que ela se mascara de várias maneiras/e inúmeras vezes até/com cara de bebe.

No mesmo âmbito, a voz da autora nos segreda; que a esperança transcende todas as situações existenciais, desde que fundamentada, na sacralidade da voz da divindade que nos preside:

O meu coração está zangado, rasgado/sangrando todos os ses e os porquês/mas mesmo assim, mesmo assim/sei que amanha vou acordar/com o meu coração remendado/com todas as palavras sagradas.

Ao fim e ao cabo tal como nos explica Boff, a espiritualidade na sua vertente antropológica nos mostra quanto a pessoa possui a capacidade de captar o que está para além das aparências, o que está para além daquilo que se vê, daquilo que se escuta, daquilo que se se concebe. Neste sentido, Sónia Sultuane revestida dessa espiritualidade, concebe as coisas não apenas como coisas, mas como metáforas, como símbolos de outra realidade, que está para além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo. Assim as coisas que nos acontecem, são encaradas no sentido em que significam para a nossa vida, a partir das visões novas, que nos propiciam.

Um dia sonharei o dia e acordarei perdida/na asa nocturna divina um dia encontrarei o significado da vida.

A forma de crença na reencarnação hoje mais difundida apregoa que, por ocasião da morte, há um Eu profundo que sobrevive e faz a travessia para um outro corpo a fim de viver uma nova vida, enriquecendo-se, por conseguinte, de vidas em vidas, ou purificando-se de vidas em vidas. Neste sentido, o esquecimento das vidas anteriores, a cada novo nascimento, não constituiria algo digno de importância, uma vez que, no além, a nossa consciência recuperaria, a cada vez, as vidas anteriores e delas faria uma síntese. Neste âmbito, a autora regista no poema “Na balança de Deus” que Afinal toda a vida vale a pena ser vivida/pois faz parte do nosso Karma/para quando regressarmos, sentados na balança de Deus/o nosso coração seja pesado com as medidas justas/e possa ficar equilibrado entre o amor e o perdão.

Conforme nos ensina o professor Paulo Borges, existem múltiplas modalidades do amor, que, eventualmente, se desenvolvementre estas duas possibilidades extremas: o dom incondicional de si para o bem do outro, como uma mãe, que oferece o seio ao recém-nascido sem esperar nada em troca, e o apego e sucção voraz da criança no seio materno, pois disso depende a sua sobrevivência.

Entre estas duas experiências, e combinando-as de modo complexo, se estendem os múltiplos níveis da escala que Jean-Yves Leloup vê como o “arco-íris” do modo humano de viver a experiência amorosa. Consoante as suas designações na língua grega, teríamos assim, da forma mais condicionada à mais livre: 1) porneia, o amor como apetite devorador; 2) pothos, o amor como necessidade e carência possessiva; 3) mania, pathé, o amor como paixão e sedução igualmente possessiva; 4) eros, o amor vivido como interesse erótico; 5) philia, o amor amizade, nos seus vários níveis; 6) storgé, o amor ternura; 7) harmonia, o amor harmonioso e bondoso, primeiro nível do amor desinteressado; 8) eunoia, o amor como dedicação e compaixão; 9) charis, o amor como gratidão e celebração, sem porquê nem para quê; 10) agapé, o amor gratuito e incondicional, na tradição cristã idêntico a Deus que não seria tanto um ser que ama, mas o próprio Amor. Estas ultimas modalidades do amor (Charis e ágape) constituem o factor de fé e de esperança aqui exposto.

No Colo da Lua

Texto de Introdução á discussão do livro

Embalado “No colo da lua”
Aurélio Ginja – Mestre em Educação

Apraz-me estar aqui, no Graal, na sempre nobre categoria de leitor e de ouvinte. Leitor e ouvinte, sempre insaciável, na voracidade de interpelar, indagar e multiplicar o olhar numa diversidade de obras, orais e escritas, encarando cada um delas como um interlocutor que nos desafia, para nos multiplicarmos. É, isso, minha querida Sara Jona, que este espaço Graal, que dinamizas nos proporciona.
Depois de ter ficado, alguns dias antecedentes a esta sessão, desafiando a gravidade, suspenso no Colo da Lua constatei a evidência de uma velha verdade: a de que a poesia muitas vezes funciona como uma vitamina que revitaliza a alma, tonifica e encanta, mas sempre numa condição: a de abrirmos as portas e janelas, da nossa interioridade a ela.
Com efeito, a poesia é como um rio que exige de nós prévias comportas escancaradas à sua passagem, para gerar aquela energia espiritual que nos electriza, a poesia exige uma certa disponibilidade, uma abertura, uma pré-disposição psíquica que permite tornar audíveis sons mudos ou até tornar mudos alguns silêncios estrondosos. A poesia exige em nós certas disposições íntimas, que faça jorrar adentro seus tesouros potenciais às vezes – muitas vezes mesmo – bem resguardados dentro dos labirintos mais sinuosos da linguagem. A poesia, pela sua natureza, constitui aquele breve lampejo de uma Verdade espantosa e gigantesca, mas nunca inteiramente desvelada, pois sempre permanece envolta na grande neblina de mistério, um mistério que, teológica e humanamente falando nos envolve(rá) até ao grande dia. Por isso mesmo aceitei o desafio de vir aqui partilhar horas de leitura e de escuta activa no silêncio das pausas que ia fazendo enquanto lia, seduzido por um facto: No Colo da Lua é um livro impregnado de lirismo. E o lirismo talvez seja – aquele clique relampejante – que desvela momentaneamente outros horizontes além de nossa pequenez de mortais diante de enigmas, inumeráveis e indecifráveis, que se desdobram nas nossas vidas, na procissão continua de dias e noites, chegadas e partidas, alegrias e tristezas, amores e desamores, durante a nossa peregrinação terrena.
Folheando o livro No Colo da Lua “instalei-me” inicialmente na “Última Morada Vazia”. Titulo do primeiro poema com que me deparei. Na Última Morada Vazia, um poema descritivo com um desenlace dramático, em sequência gradativa, onde o eu-poético assume uma voz carácter testemunhal …” eu vi/os olhos estilhaçados. (…)/Eu ouvi/o coração chorar (…) eu vi/uma mãe chorar a morte de seu filho…/menino… Para dar contornos de dor e amargura os versos recorrem a termos que evocam um contexto de extrema violência, opressão ou tortura, mas é da vida, que se trata “…olhos estilhaçados”,”…. boca amordaçada”,…” arame farrapado do sofrimento.”,…” alma esquartejada”. Eis-nos perante o doloroso quadro com a imagem do amor materno confrontado pela foice inclemente da morte do filho, essa mãe e esse filho ido retornam a nós, como leitores, deixando resvalar para o intimo inquietações vivenciais …o porquê e o para quê da existência… Se para além de todas as contingências, para além da própria morte, como humanos estarmos devotados a um destino de comunhão… não se pode ignorar a singularidade de cada destino… de cada existência enraizada e irrepetível… envolta na neblina do mistério e da dor… esse cálice da dor partilhado em doses tremendamente desiguais, no banquete da existência. O sujeito-poético traz-nos neste poema cru, a necessidade de ressignificação da existência ocasionada pela dolorosa consciência da perda, da finitude, da presença provisória de nós mesmos e daqueles a quem amamos e a nebulosidade do porvir… e nisto na figura da mãe, o amor, talvez como a única e definitiva permanência, que pode atravessar a transitoriedade das nossas existências… Existências feitas hastes inclementemente arrebatados da machamba da vida, para retornar ao ventre da mãe terra. Existências levadas pela morte, poeticamente descrita por Sultuane como:
“Essa mão transparente, gélida,
Que nos rouba tantos para devolver à terra,
Onde perpetuamente jogamos flores,
As nossas esperanças, os nossos sonhos…”
(Poema: Se soubesse Voar, in No Colo da Lua, Sónia Sultuane).
Neste livro, a poesia de Sónia Sultuane, aparentemente, não corporiza um discurso vincadamente de natureza social. Nos seus textos, o discurso poético configura-se mais como uma apologia da liberdade estética e ideológica, tornando-se assim um espaço para discutir sobre a humanidade, na perspectiva em que esta poesia aborda, com simplicidade, a existência concreta, com os seus dilemas quotidianos, suas tensões essenciais, seus significados, na complexa relação entre vida e literatura. Nestes versos, em algum momento vemos o reflexo do poder que a poesia tem de humanizar. A literatura aqui não surge nem como âncora, nem amarra nem mastro mas como uma bandeira da alma, por via dela, a poeta como que se liberta de sistemas e estereótipos. A voz poética de Sónia Sultuane acentua o sotaque da liberdade.
LIBERDADE
Quero ser a areia que cobre
Apressada a corpo desnudo do universo
Quero assobiar aos pássaros
A música despida dos ventos
Baloiçar no luar despreocupado
Fugir das mãos das árvores pregadas na terra
Soprar meu nome escrito na areia quente do deserto
Voar abraçada nos dedos dos pássaros para bem longe
Sem deixar marcas ou arrependimentos
Neste poema, o eu-poético por via da metáfora da areia aponta para a dimensão fluida do exercício poético, um exercício escorregadio livre de amarras e que se encarna na vida até a dimensão do cosmos “Quero ser a areia que cobre/ apressada o corpo desnudo do universo”. A liberdade expressa na comunhão íntima com todas as forças do universo: “quero assobiar aos pássaros/a música despida dos ventos”.
Nestes versos a poesia proclama-se solta, livre, desapegada, pura asa do espírito na ânsia de “baloiçar no luar despreocupado/fugir das mãos das árvores pregadas na terra”. Na metáfora das”mãos da árvore pregadas na terra”, fica incutida a irreverência poética de Sultuane em relação à tradição, representada pela árvore presa à terra, galhos submissos aos açoites dos ventos, e troncos imóveis diante das vozes ancestrais. A voz poética de Sultuane, solta-se a fim de poder “voar abraçada nos dedos dos pássaros para bem longe/ sem deixar marcas ou arrependimentos”. Logo podemos afirmar que Sónia Sultuane na delicadeza subjectiva de sua linguagem, propõe uma poesia irmanada ao universo, uma poesia telúrica e cósmica. Como se proclamasse o estatuto de membro de pleno direito, de uma sociedade livre, à escala planetária, regida por regras universais, aplicáveis indistintamente a cada indivíduo independentemente da raça, credo ou sexo, como se condenasse a condição prisioneira do individuo integrado no grupo, que se proclama seu “dono”, mantendo-o refém do seu timbre cultural, religioso, ou histórico.
Esse desprendimento, essa libertação das âncoras faz-se um propósito, um decreto interior, tornado acto e atitude, proclamada no poema Capulanas:
“Atiro ao mar as sete chaves do baú
Das capulanas já escolhidas
Pois ainda quero voar distante. (…)
Cubro-me com o manto da poesia
Para que meus sonhos de infância não sejam roubados”
Finalmente, é como se o sujeito-poético se fizesse eco da voz do escritor libanês Amin Maalouf, para quem: “As raízes enfiam-se na terra, contorcem-se na lama, crescem nas trevas; mantêm a árvore cativa desde o seu nascimento e alimentam-na graças a uma chantagem: «Se te libertas morres!». As árvores têm de se resignar, precisam das suas raízes; os homens não. Respiramos a luz, cobiçamos o céu e quando nos metemos na terra é para apodrecer. A seiva do solo natal não nos sobe pelos pés em direcção à cabeça, os pés só nos servem para andar. Para nós só as estradas contam. São elas que nos guiam – da pobreza à riqueza ou a outra pobreza, da servidão à liberdade ou à morte violenta. Elas fazem-nos promessas, levam-nos, empurram-nos e depois abandonam-nos. E então morremos, tal como nascemos, à beira de uma estrada que não escolhemos.“
TRADIÇÃO E TALENTO
No entanto, tal como enfatiza o poeta T.S. Eliot, ainda assim a tradição se infiltra no texto literário, mesmo nos espaços mais supostamente individuais. Para o ensaísta, a tradição é sempre fruto de um esforço.
O artista que empreende tal esforço consegue ser tradicional, o que significa ter a percepção da distância e proximidade do passado, reunindo sentimentos atemporais ao tempo em que vive. É assim que no poema “Nasci poeta”, o sujeito-poético declara:
“Embriagam-me os poetas invisíveis e imaginários
Que me habitam quando durmo.
Levito na sala do pensamento amassado
Bebo o gosto dos versos adoçicados
Nos meus lábios ainda guardo o gosto
Do café amargo o ultimo trago do cachimbo
Do poeta desconhecido que me embalo.”
Neste poema o eu-poético interroga-se sobre os limites da sua individualidade de artista e sugere que, em certa medida, as forças da tradição, o imaginário social e colectivo agem sobre a sua obra, ainda que, de forma inconsciente. Com efeito, em toda a obra literária ocorre uma lógica de recriações das matrizes culturais, mesmo que nem sempre fiquem explicitadas no texto. Sónia Sultuane nesta busca e procura da sua marca individual, confessa-se devedora de outras vozes, vozes de outrora e vozes contemporâneas que se infiltram na sua poesia.
O poema “Nasci Poeta” configura-se também como um metapoema. No contexto da metapoesia, o eu-poético indica as linhas com que tece urdidura do seu projecto estético. É por via da metalinguagem que o eu- poético socorre-se do poema para reflectir sobre poesia. Na primeira estrofe “Embriagam-me os poetas invisíveis e imaginários/que me habitam quando durmo,” o eu-poético nos declara que a sua voz é o eco de outras vozes. Ou seja, a influência e a inclusão de outros, na produção literária é um facto do qual o ser poético nunca vai se libertar, porque é intrínseco ao exercício do poder das palavras.
Na segunda estrofe, o verso “as palavras dançam amassadas”, há uma perspectiva de labor poético, de dinâmica, de movimento, que sugere uma imagem de busca de harmonização, de consonância, de comunicação entre as palavras para que possam partilhar juntas o estatuto de poema, transformadas sob o comando da voz, que as selecciona, para uma nova dança, uma nova condição, um novo plano.
Na última estrofe, o verso “ na escuridão encontro a luz do arco-íris/ para desenhar os poemas partilhados pelo cordão/ umbilical”, o eu-poético deixa a sugestão de que as palavras se deixam embalar ao sabor das vozes que as chamam; sendo o cromatismo do arco-íris, uma sugestão de transfiguração, de metamorfose, remetendo para a plurissignificação, como bandeira do projecto literário de Sónia Sultuane.
Sónia Sultuane procura tornar a literatura um espaço para discutir sobre a humanidade, um convite a aceitação da singularidade, da tolerância, transcendendo as diferenças de raça, classe e género. Esta perspectiva em que se situa a poeta, faz lembrar Glória de Santana, a poeta de Pemba, nos versos lapidares em que nos diz que: entre o mar e o céu/e os nossos passos/a nossa humanidade é o mesmo laço/irmão.
A DIMENSÃO DA CORPOREIDADE E DO EROS
Já Novalis dizia: ”tocamos o céu, quando colocamos nossas mãos num corpo humano.” O corpo, que, em Sónia Sultuane, se faz poesia, se faz tela de palavras… que aparecem como pedaços e continuações da própria dimensão corpórea…
CORPO
“Vou-me fundir contigo em poesia,
Nas profundezas do meu corpo
Nas cordas traçadas do meu umbigo (…)
Vou cobrir-te devagarinho
Escrevendo nos contornos do meu ventre
As palavras vazias e pudor
Nas minhas mãos ofereço-te o caminho
Para que descubras sozinho
Todos os contornos da poesia em carne viva.”
Se a pornografia cria um impacto de choque, na medida em que torna publica o íntimo mais profundo do desejo oculto, o erotismo pelo contrário, tem a marca bela e apetecível do sugestivo, arte que seduz e faz cócegas ao o erotismo segue em sua contramão, operando noutra esfera, massajando o imaginário.
Há nesta poesia a dimensão do eros, expressa em versos sensuais e luxuriantes como uma irradiação de sensações numa noite rodopiante. O eu-poético traz-nos sobre a superfície destes versos desnudos, uma voz aberta com que musicaliza os fluxos de ar à sua volta e poetiza os gestos, os cheiros, os sabores da vida.
Poesia táctil, tacto é o sentido que marca, no corpo, a fronteira entre os deuses Eros, do amor, e Tanatos, da morte. De um lado a pulsão para a vida, a criatividade e o prazer e do outro a estabilidade, a segurança e a destruição. Ambos face da vida. 
“Arrebata-me o teu corpo contorcido
As tuas mãos suadas passeando pela minha perna
Desnuda
Colo-me ao teu ventre de veludo
Os teus dedos percorrem a pele
Que me cobre o corpo ávido de desejo.”
(Poema: Dançarino misterioso, in No Colo da Lua, Sónia Sultuane)

“Botão carnudo todo aberto
Pronto para se entregar
Livre a fragrância
Chamamento da vida
Deixo à mostra o desabrochar da vida
Êxtase.”

(Poema Pétala a pétala, in No Colo da Lua, Sónia Sultuane)
Como dizia Rubem Alves, é por meio do tacto, que o amor se realiza. O bebezinho pára de chorar imediatamente quando sua boca se ajusta ao seio. É uma experiência táctil de tanto prazer que perdura, indelevelmente, na memória erótica. É por isso que, voltando ao saudoso Rubem Alves mesmo depois de desmamados, os bebes, já adultos, continuam à procura da experiência táctil original, completamente dissociada do leite.
“Saboreias no meu corpo o gosto do amor
Nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo
No meu ventre o gosto do abacaxi
Nas minhas coxas, nessas, dou-te as mangas verdes
Vem buscar na minha boca o açúcar
Para aprisionares e mordiscares a tua fruta
Nesse banquete inesquecível”

Segundo um belíssimo mito narrado por Sócrates, quando a deusa Afrodite nasceu, houve uma grande celebração, para a qual foram convidados todos os deuses. Todavia, por esquecimento acabaram não convidando a deusa Penúria. Assim na sua condição de miserável e faminta, Penúria, no final da festa, aproveitando-se do sono dos demais deuses esgueirou-se pelos jardins e comeu os restos. Foi então que, num canto do jardim, viu Engenho Astuto e desejou conceber um filho dele. Assim, deitou-se ao seu lado e do acto sexual nasceu Eros, o amor.

Assim Eros nasce do ventre da Penúria e como sua mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável. No entanto, como seu pai, Eros é astuto, sabe conceber expedientes engenhosos para conseguir o que quer. O sentido deste belo e rico mito remete-nos para a descoberta do amor como um misto de carência e astúcia, desejo de saciar a fome e a sede, anelo de preenchimento, desejo de completar-se e de encontrar a plenitude. Na belíssima acepção deste mito, amar é desejar o amado como o que nos completa, nos sacia e satisfaz, nos dá plenitude. Amar é desejar a saciedade, é desejar fundir-se na plenitude do amado e ser um só com ele. E na busca dessa plenitude, onde “choramos juntos lágrimas com sabor a união” instalamo-nos, na Tenda dos Desejos, onde o sujeito-poético nos confidencia:

“Banhei o meu corpo com pétalas de rosas vermelhas
O cheiro exótico do deserto e o óleo da sedução
Entrei na tenda dos desejos
Cheirando a rosas e a incenso da imaginação
Entreguei-me, no meu leito coberto de sedas
Tão leves com a ilusão”

DIMENSÃO MÍSTICA
Em alguns poemas o eu-lírico dirige-se a entidade divina que ele deseja celebrar. Estes poemas de Sultuane poderiam ser enquadrados como poesia devocional, onde estamos claramente diante de uma voz que que interpela à divindade.

É como uma cantora, que acena em cumplicidade ao verdadeiro criador e inspirador dos seus versos, que o eu-lírico procura se dispor, aparecer diante da Presença daquele que celebra, o ”Grande Pai,” como luz, como intimidade, como o grande confidente:

“Oiço o mundo, falo contigo, Deus,
És a mão que escreve o caminho do céu,
És a luz que me mostra o caminho do meu ser
(…)
És o templo onde guardo os segredos que ninguém pode
Ouvir.”

(Sónia Sultuane, poema: Templo dos Segredos, in No Colo da Lua)

Eu diria que nestes versos o eu lírico como que se faz parte do grande poema cósmico e do seu autor. Irmana-se com a sua poesia à criação divina, equiparado o mundo a uma obra-de-arte infinitamente continuada, já que a entidade divina não se cansa e não descansa.

LOUCAMENTE
O pássaro segredou-me
Que numa noite sentado na neblina acinzentada
Viu o universo chorar
As suas lágrimas eram gélidas cor de prata
E o Grande- Pai muito zangado.
Gritando e dizendo
Não entendo os humanos:
Destroem o meu lar,
Contaminam os meus rios e mares
Poluem o ar,
Desnudam a minha terra,
Matam as estrelas,
Furam o Sol que me vai chegando aos poucos,
Rasgam os céus abrindo crateras
Maiores do que eu,
E ainda, é mesmo assim
Loucamente
Pensam que eu tenho que os suportar

Um poema que personifica o universo e a natureza, na figura do pássaro. O universo é comparado a um imenso lar divino. Foi graças ao Cuidado, prescrito pelo Grande Pai, que a humanidade, chegou a este patamar, o cuidado que se constitui como uma força originante e continua, que mantem viva a humanidade. Sem esse cuidado, quotidiano e persistente, o ser humano seria apenas uma porção de argila à margem de um rio, ou um espírito intemporal, fora das coordenadas da História. Foi com extremo cuidado, que esse “Grande Pai”, moldou o ser humano, derramado no coração de milhões e milhões de pais e mães, o empenho pela arte de cuidar, semeando nessa empreitada a dedicação, a ternura, a devoção, o sentimento e o coração. E criou a responsabilidade e a preocupação, de cuidar de cada ser que ele plasmou, e da morada que para todos os seres vivos construiu. Essas dimensões, da ternura, da dedicação, da devoção, consagraram-se como verdadeiros princípios constituintes do ser humano, entranharam-se na alma. Viraram carne e sangue, corpo e alma do ser.

Sem estas dimensões, o ser humano jamais seria humano. Mas hoje, como nos alerta o sujeito poético, “Loucamente”, deixamos que a poluição, o desmatamento, a contaminação dos rios e dos mares, façam o “Universo chorar”. O cuidado que começa com a própria morada ecológica, de cada ser, representando o pessoal e o local e se expande à escala global, ao grande lar do “Grande Pai”. Como em toda a poesia de Sónia Sultuane, neste livro, tudo se interliga por via da mente e do coração: raiz e infinito, corpo e espírito, terra e estrelas, local e global. O eu lírico ao condenar as tropelias com que loucamente vamos quebrando a reverência pela vida e pela natureza, propõe- nos uma outra postura: cuidar do meio ecológico, que é o próprio, vivenciá-lo com o coração, como o seu próprio corpo estendido e prolongado, na forma de terra, na forma do mundo; descobrir as razões para conservá-lo e fazê-lo desenvolver-se, em plenitude.

Neste sentido Loucamente é um alerta, um apelo a cada um de nós para que, nos parágrafos da vida, cada um reescreva culturalmente a sua existência, contribuindo para mudar a paisagem do mundo. Porque cada um pode ser um empenhado criador, um diligente cuidador ou um perigoso devastador da vida e da natureza. Um poema-apelo no sentido de reverência pela vida, no sentido de não se negar nem o que é nem o que pode vir a ser. Aprender a viver e viver aprendendo a fim de humanizarmo-nos e humanizar a história. Um poema que nos remete para redescoberta do sagrado tendendo para um diálogo cúmplice entre ciência e fé. A religião, em Sónia Sultuane, surge concebida como um exercício quotidiano da fraternidade universal, nesta casa comum, que nos coube como talhão, na Via-Láctea. E assim, finda a jornada, poder(mos):

“Sentar-me no colo da Lua amando a imensidão do
Universo
Saboreando cachos de uvas pretas adocicadas
Para poder entregar-me a todos os sabores exóticos,
Cantando e suspirando pela vida.”

(Sónia Sultuane, poema No Colo da Lua)

E deste modo expondo a última e definitiva razão, com fundamento, no amor, alicerce da existência, poder dizer: 

“Meu Deus, é tudo tão belo, tão verdadeiro
Quando a tua mão abraça a nossa fé
E deixa-nos ter saudades do nosso guia espiritual
O amor.”

(Sónia Sultuane, Poema: O deserto para amar, in No Colo da Lua)

E guiados pelo amor, ir em busca da chave sagrada, e achar finalmente a senha decifradora do mistério do ser:

“Para poder abrir todos os meus chacras
Para ver pelo olho do Pai
Quem sou eu afinal”

(Sónia Sultuane, Poema : Chave Sagrada, in No Colo da Lua)


Texto de introdução à discussão do livro No Colo da Lua, no programa “Tertúlias de Sábado”, no Centro de Graal-Moçambique, 2016.




Poeta, escritora, artista plástica, cronista e curadora.

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