Prefácio
“A voz feminina do poema”
Ana Mafalda Leite – Escritora
A leitura/escuta desta colectânea de poemas de Sónia Sultuane lembra-nos a essência do lirismo, canto, música e interioridade emocional. Como fragmentos confessionais amorosos, estes textos suspendem-se na intemporalidade – o amor está em todos os tempos e vive sempre no presente – por isso a recordações sempre um acto de presentificação dos sentidos, e a ausência dela, morte e deformação:
“Quando um dia já só te recorde e já não te sinta,/quando recorde só os teus olhos, não o teu olhar,/a tua sombra, não o teu corpo os teus beijos, não o teu gosto,/os teus ecos, não as tuas palavras,/quando todos os sentidos estiverem mortos”.
Não é fácil escrever poemas de amor, quando esse mesmo tema percorre séculos de escrita na literatura de todos os cantos do mundo. No entanto, encontramos nestes objectos/fragmentos/poemas a singularidade narcísica da sua exposição e exibição. Existe aqui uma quase reivindicação da forma de sentir e do ser amoroso, a exaltação do prazer, de uma força erótica e da assumpção desse mesmo erotismo, social e secularmente negado à mulher. Nessa perspectiva, os poemas de Sónia Sultuane, além de muito femininos, são também insinuantemente inconformistas, pela sua temática sensorial e seu desnudamento emocional.
Obsessivamente, “como que saboreando pedaços de nogat – deixavas-me trincar o teu doce,/e a cada mordidela,/sentia os teus lábios de mansinho,/como podia esquecer-me desse sabor,/atorrado, de cor de canela,/cor desses teus lábios adocicados,/onde hoje trinco e mordo,/à procura desse néctar,/com o mesmo gosto a nogat”. A poetisa tenta descrever essa alucinação do sentir, feito corpo, na travessia entre o conhecido e o desconhecido, entre desejo, força, arrebatamento, e o medo que se torna similarmente crescente, como a invasão de uma sombra, que a leva aos patamares da cegueira, zona de provável escuridão: “olho-me, sinto-me profundamente,/vontade, desejo,/toco-me, entrego-me a mim…/entrego-me a esta escuridão,/mete medo…neste medo…”.
O corpo está cravado em cada um dos poemas pelo seu sentir e, de cada um deles se evola ou solta um aroma, uma forma de tacto, de paladar, de som, de imagem. Os cinco sentidos são insuficientes para a captação integral do sentir amoroso, corporiamente inebriado. Feminina, por excelência, esta forma de implicação da escrita como corpo, erotiza a letra/som, que se inscreve entre pele e pena e entre voz e verbo; há um arrebatamento e uma fisicidade da palavra que a torna concreta, sensível, palavra poética nascida dos sentidos, que renasce em amorosa vulnerabilidade, exibindo um corpo, que fala, diz, contradiz, esplende, vibra, linguagens não codificadas, na sua surpresa de acontecimento, de dádiva e de entrega. O amor que nos poemas de Sónia se faz revelação não é um amor da alma, mas do corpo, um verbo feito carne, encarnação.
Poema, “Beijo Negro”. A alma que o sopra é apenas o início do rastilho que acende a explosão de todos os físicos sentidos: “A tua alma, a alma das almas,/já a viste? Já com ela falaste? já a sentiste?/ deixa-me rir../e toda a química dos sentidos/deixa-me rir:..”
O poema Africana amplifica o tema da identidade, uma vez que tende a territorializar o feminino. Além desta primeira identidade, e lembrando, com alguma ironia, o poema “Se me quiseres Conhecer” de Noémia de Sousa, a poetisa assume a sua africanidade: “dizes que me querias sentir africana,/dizes e pensas que não o sou,/só porque não uso capulana a porque não falo changana,/porque não uso missiri nem missangas,/deixa-me rir…”. Quer este poema desenhar um percurso identitário de abertura as diferenças de género, de raça, de língua e de cultura, num continente, e num país, que se caracteriza também pela coexistência harmónica de tal múltipla diversidade: “pelo sangue que me corre nas veias,/negro, árabe, indiano,/essa mistura exótica, que me faz filha de um continente em tantos/onde todos se misturam,/e que me trazem esta profundidade,/mais forte que a indumentária, ou a fala,/e sabes porquê?/porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África,/afinal o que é que tu saberás? O que é que tu sabes?”
Interrogativa, reticente, espantada na exclamação, esta voz percorre os poemas como o sangue nas veias de um corpo amoroso, febril, pleno de vida, palavras que são o próprio sujeito em acto de revelação o: “As palavras que te dou,/são o que sou,/são o que sinto,/e como me sinto,/essas são as minhas palavras: EU.”
Prefácio à obra Imaginar o Poetizado 2006.
Texto de Apresentação Pública – Maputo
“Imaginar o poetizado”
Calane da Silva – Escritor
Lançar este livro em Setembro, mês de ventos e brisas, mês de transição para o nosso verão húmido e ardente, parece-me espiritualmente prometedor pois, igualmente, o sinto enquadrado numa data emblemática, precisamente relacionada com a do nascimento de Noémia de Sousa, primeira grande senhora da poesia moçambicana, nascida precisamente a 20 de Setembro de 1926, ali na Catembe, aquela que foi “a voz/nossa voz”, aquela que “abriu a picada por onde depois todos nós passamos” no dizer tão acertado do nosso saudoso Rui Knopfli.
E quando o livro que hoje estamos a lançar ao público é de uma poetisa, de uma mulher jovem e também bela, mulher ainda este ano eleita para os corpos directivos da Associação de Escritores Moçambicanos, então o nosso prazer e honras e acrescenta neste meu singelo gesto de vos apresentar quem, igualmente, já não é desconhecida dos leitores moçambicanos, uma vez que esta já é a sua segunda obra, também de poesia. Sónia Sultuane convida-nos através do próprio título da sua obra a imaginar, ou seja, a ganhar asas sobre o que escreveu, a imaginar o que poetizou, por isso, sem mais delongas, vamos aceitar o convite e viajar imaginando no pássaro azul da sua escrita.
Antes de qualquer outra incursão estético-estilística sobre o seu discurso lírico, vamos dizer que se trata de um texto em que sujeito poético se assume na sua plenitude feminina, como mulher que ama e quer sentir- se amada, que vibra e se empolga num corpo-alma ardente de um amor primeiro recheado de ilusões e desejos, de sentimentos egóicos, caminhando para a libertação das emoções.
Texto de Apresentação pública do livro Imaginar o Poetizado, Maputo, 2006.
Apresentação Pública – Maputo
“Imaginar o poetizado”
Fernando Couto – Escritor
A publicação deste livro, cinco anos depois de uma outra colectânea de poesia pode ser tomada como confirmação de uma vocação poética. E mais ainda: que a autora não se apressa e, ao contrário, indicia uma exigência de qualidade que primara pela selecção. E esta foi a primeira reacção da Editora [Ndjira] ainda antes de abrir o livro.
Esta poesia alcança muito bem o objectivo que pretende toda obra de arte – o de comunicar a fundo com o seu destinatário. E para isso é fundamental que o autor se desnude, se entregue por inteiro à sua criação. E a Sónia entregou-se sem reservas.
A cálida sensualidade que exala esta poesia faz lembrar Florbela Espanca, uma Florbela mais moderna, já de um outro clima, cultural e espiritual, uma Florbela africana capaz de conseguir aquilo que o grande poeta francês Alain considerava objectivo, ou seja, o verdadeiro poema é um fruto da natureza. E fruto da natureza, pujante fruto é sem dúvida todo este livro. E mais e bem melhor já disse a professora Ana Mafalda Leite. Obrigado, Sónia Sultuane.
Na Apresentação pública do livro Imaginar o Poetizado, Maputo, 2006.
Texto de Apresentação Pública – Beira
“Imaginar o poetizado”
Maria Pinto de Sá – Actriz, Presidente da casa do artista na Beira
Tenho hoje o prazer de aqui estar para vos apresentar uma obra de uma mulher poeta moçambicana: Sónia Sultuane. Imaginar o Poetizado é o título do livro que Sónia Sultuane hoje nos traz. Poeta ou poetisa? Quando eu era jovem não dizíamos poeta, referindo-nos a uma mulher. Era poetisa. Hoje todos os que escrevem versos no piano do “exercício espiritual” são dignos de um mesmo tratamento. Aboliu-se a distinção de sexos em literatura.
Infelizmente em Moçambique, embora cada vez mais a mulher tenha vindo a ocupar lugares anteriormente quase exclusivamente restritos aos homens, ainda não existe uma significativa literatura realizada por mulheres.
Porquê? Foi a pergunta que a escritora moçambicana Paulina Chiziane dirigiu a bem pouco tempo a comunidade académica da Universidade Eduardo Mondlane. E em desafio a essa comunidade instou-a a reflectir sobre o papel da mulher na literatura sabido que ela sempre foi a grande impulsionadora da literatura oral.
Embora a distinção de sexos em literatura me pareça à partida uma ideia ridícula não posso deixar de me sentir chocada ao pensar que os dedos das minhas mãos chegam para contar as mulheres escritoras moçambicanas.
Em prosa temos a Lília Momple, nascida nos anos 30, a Lina Magaia, nos anos 40 e a Paulina Chiziane, nos anos 50. Recentemente a Isabel Ferrão com um livro que o ano passado aqui apresentei. E que eu saiba por aqui ficamos.
Em poesia lembro-me primeiro, da nossa maior poeta, Noémia de Sousa, já falecida, mas também da Gloria de Sant’Ana e da Clotilde Silva, todas nascidas nos anos 20, e da Manuela Sousa Lobo, nascida nos anos 40. Depois um grande interregno, pelo menos de acordo com o meu conhecimento.
Por isso reitero o prazer que hoje tenho de vos apresentar Sónia Sultuane, de nome completo Sónia Abdul Jabar Sultuane, nascida na ex-Lourenço Marques em 1971.
Em 2001 foi publicada pela Associação dos Escritores Moçambicanos a sua primeira colectânea de poesia Sonhos. O seu nome figura também na Antologia de Poesia Moçambicana – Nunca Mais É Sábado, obra publicada em Portugal, em 2003, da autoria do escritor Nelson Saúte. Actualmente Sónia Sultuane é secretaria da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. Ela dedica-se também as artes plásticas.
Poeta do amor, na verdade a sua poesia oscila entre a serenidade amorosa e a volúpia. São elementos temáticos constantes na sua poesia o amor, o sexo, a africanidade. A sua escrita demonstra um despreocupado processo de lançar no papel as realidades interiores mais nuas e cruas. A erótica recebe toda a sua inspiração e fantasia
literária. Com ela Sónia Sultuane deu-lhe forma e brilho, derrubando todos os tabus do erotismo encarado do ponto de vista feminino, como podemos constatar neste “Nogat”: “nessa noite quente suada de sabor a África, corri-te docemente, encontrei em ti o gosto de amendoim, adocicado em açúcar, nogat.
O sabor de criança inocente a porta da escola, lembras-te? Deixavas-me trincar o teu doce, e a cada mordidela sentia os teus lábios de mansinho. Como podia esquecer-me desse sabor, a torrado, de cor de canela, cor desses teus lábios adocicados, onde hoje trinco e mordo, a procura desse néctar, com o mesmo gosto a nogat da nossa adolescência!. Mas melhor do que vos falar de Sónia Sultuane e da sua poesia é lerem Imaginar o Poetizado. Convido-vos afazê-lo.
Texto de Apresentação Pública do livro Imaginar o Poetizado, Beira, 2006.